sábado, 24 de julho de 2010

Convém Sonhar*

Manezão gostava de brincadeiras brutas, agressivas. Um senso de humor esquisito. Era o chefe de disciplina do colégio. Ele entregou ao mais franzino dos dois meninos pobres de Garanhuns, que entravam na escola pela primeira vez, um balde e uma vassoura e disse: "Este é seu lápis, este é seu caderno!" Eles teriam que trabalhar na limpeza para ter bolsa para estudar no renomado colégio XV de Novembro.

A mãe dos meninos tinha pedido bolsa aos diretores durante um encontro na escola dominical, na Igreja Presbiteriana. Analfabeta, extremamente pobre, queria que os filhos estudassem. Sonho antigo e persistente. Foi por ele que decidiu sair de Recife e tentar a sorte no interior do estado.

— Vamos para Garanhuns que os meninos precisam estudar — disse ao marido.

Eram os anos 20 do século passado. O analfabetismo era dominante no Nordeste; ela queria para os filhos outro destino. Bolsa, os diretores americanos, que fundaram o colégio, avisaram que não davam. Mas aceitaram que dois deles estudassem de graça, se concordassem em trabalhar no colégio. O mais velho dos dois irmãos que ganharam a bolsa-trabalho tinha 13 anos; o mais novo, 11. Anos depois, a família conseguiu que entrasse nesse grupo o caçula, então com 7 anos.

De tarde, eles varriam as salas e lavavam os banheiros. De madrugada, espanavam as carteiras e mesas. Depois iam para a aula como todos os alunos. A mãe orientava que só vestissem o uniforme após terminada a limpeza e depois que se limpassem no banheiro do colégio. Ela sempre entregava a eles uniformes limpinhos, que, às vezes, secava no ferro durante a noite. Nem sempre estavam bem alimentados.

— Trabalhávamos para estudar e ainda passávamos fome — relatou recentemente o mais novo dos irmãos.

Foram eternamente gratos à oportunidade que receberam e retribuíram estudando muito. Os três foram alunos brilhantes, de pontuar nos primeiros lugares, de queimar etapas com provas no estilo supletivo.

Orientados pelos diretores e professores do XV de Novembro, continuaram seus estudos para além do ginásio, além de Pernambuco. Os três foram para o seminário presbiteriano em Campinas. O curso era apertado, nota mínima 8. Estudava-se não apenas teologia. Saía-se de lá com várias licenciaturas, para o trabalho de professor do ensino médio. No seminário, o menino que recebera de Manezão o balde e a vassoura tinha tão bom desempenho, esforçava-se para falar português tão irretocável, que recebeu o apelido de "mulatinho pernóstico".

Ele dava de ombros, porque sabia dos seus sonhos e estava decidido a realizá-lo: sonhava dirigir um colégio e, quando estivesse nesta situação de poder, dar bolsa a meninos pobres, como ele, que teriam então a chance que teve. Era isso que pedia nas orações que costumava fazer num morro de Garanhuns chamado Monte Sinai. Passava por lá entre um biscate e outro que fazia — de vendedor na feira a pintor — para ajudar a renda baixíssima e instável da família. O pai era pedreiro em frente de obras, nem sempre tinha trabalho e renda.

Quando se mudou, aos 28 anos, para o Vale do Rio Doce, fundou, em Caratinga, junto com outros líderes locais, o primeiro ginásio da região. Como diretor, fazia exatamente aquilo a que se propôs na adolescência: distribuía muita bolsa de estudo. Não o fazia em troca de trabalho. A alguns dos bolsistas mais velhos, muito pobres, também ofereceu trabalho assalariado no colégio.

Os três se dedicaram à educação, os três se dedicaram à igreja. Dividiam-se entre as duas frentes de trabalho. Como acreditavam no ensino laico, não misturavam as duas. Foram excelentes professores nas escolas onde ensinaram. Foram brilhantes oradores nas igrejas.

A fé em Deus era inabalável, a paixão laica que tiveram era a educação. O mais novo e o mais velho também fizeram Direito. Dos três, o mais dedicado à educação foi o do meio, exatamente o menino franzino que tinha recebido o balde e a vassoura. Além do colégio que fundou e fez prosperar em cursos superiores, abriu escolas públicas em outras cidades, a pedido do governo do estado, na época da interiorização do ensino fundamental em Minas Gerais. Ele mesmo estudou a vida inteira, como autodidata e leitor voraz, os mais variados assuntos: da filosofia à física quântica.

Tiveram sempre orgulho de terem trabalhado para conquistar o direito de estudar num colégio de excelente qualidade de ensino. Nunca se deram conta de que trabalhar cedo demais era um absurdo. Achavam que foi uma troca justa à qual lhes coube corresponder. De Manezão, vingaram-se fazendo dele uma figura folclórica nas famílias que constituíram. "Brincadeira de Manezão" passou a ser a expressão que designava a atitude de humor grosseiro, da pessoa que agride, quando tenta brincar.

O mais velho, Boanerges, morreu aos 62 anos. O mais novo, Nathanael, está vivo e lúcido aos 85 anos. O do meio, o menino franzino, alvo da brincadeira do Manezão, é Uriel, o meu pai. Ele morreu exatamente há 10 anos, em 29 de junho de 1998. Quando estava velando seu corpo, um homem se aproximou de mim e disse que tinha sido menino de rua até que meu pai lhe deu bolsa no colégio e no internato, e tinha virado juiz de direito. Outro contou que trabalhava na roça, era analfabeto, até a visita do meu pai. Passou a estudar e virou gerente de banco. Histórias assim foram me enchendo de orgulho naquele dia difícil.

Nathanael, meu tio, fez o sermão do culto de ação de graças pela vida dele. Ao lado do corpo do irmão, começou dizendo: "Este homem sonhou. Convém sonhar." Essa história sedimentou em mim a confiança na força da educação.

* Escrito por Miriam Leitão e publicada no Jornal O Globo do dia 28/06/2008.

Porque hoje é sábado


Lançado na última quinta-feira, na livraria Argumento, no Rio de Janeiro, "Convém Sonhar", um livro de colunas que vão além de economia. Nele, também tem assunto sobre ecologia, questões raciais, a questão da mulher, o meio ambiente, crônicas, política e jornalismo. Os textos foram selecionados da coluna do jornal “O Globo”.

Quem quiser ler pode escolher o assunto do seu interesse porque está dividido por capítulos. Essa é a vantagem de coletâneas. Quem gostar de educação pode ler Mãe das Batalhas. Tem uma que se chama Visita das Águas que é a história de uma coluna que a Miriam Leitão começou, parou e retomou quatro anos depois.

Uma crônica chamada Elas Carregam Trens conta a história de uma mulher que a Miriam encontrou por acaso e que a ensinou muito. Tempo incerto é sobre uma visita que ela fez ao MetOffice, centro de climatologia da Inglaterra. O Senhor Tolere fala da visita ao Parque Grande Sertão Veredas. Enfim, algum ponto desse livro a gente se encontra. Vale a pena ler.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Lançamento de livro no blog


Hoje acontece o lançamento do livro Convém Sonhar, escrito por Miriam Leitão.

A noite de autográfos será na Livraria Argumento do Leblon, às 19h.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Lançamento de livro no blog


Convém Sonhar

Uma das mais respeitadas jornalistas do país, Miriam Leitão, reúne as crônicas mais marcantes, publicadas ao longo de seus quase vinte anos de carreira. Dividido de forma temática, este livro, mais do que uma coletânea de textos, retrata a história recente do país, com os acontecimentos que marcaram a sociedade, a política e a economia.

Miriam Leitão tem coluna diária no jornal O Globo, é comentarista de economia da TV Globo, Rádio CBN, além de ser âncora no programa Espaço Aberto veiculado pela Globonews.

No livro, além de economia, tem jornalismo, política, meio ambiente, questões institucionais, social, racial, da mulher e, no final, um conjunto de colunas que são mais crônicas. Justamente desse bloco final é que sai o título do livro, Convém Sonhar, uma história bem pessoal, que ela considerou valiosa porque fala da importância da educação.

Lançado pela Editora Record, Convém Sonhar, possui 504 páginas e pode ser adquirido pelo preço entre R$ 44,00 e R$ 55,00.

Assim, para prestigiar, estarei na próxima quinta-feira, 22, na livraria Argumento do Leblon, participando deste lançamento. É claro que eu quero o meu autografado.