sexta-feira, 10 de outubro de 2008

38 questões sobre a crise

A Revista Época, na edição dessa semana, trouxe uma série de perguntas fundamentando esta crise que afeta toda a economia mundial.

Segue, na íntegra, as perguntas e as referidas explicações.

Bolha imobiliária? Créditos podres? Colapso de crédito? A crise financeira é tão complexa que deixa perplexos mesmo economistas de primeira linha, acostumados ao jargão quase impenetrável dos mercados. Iniciada nos Estados Unidos, ela contagiou outros países, chegou ao Brasil e terá efeitos em todo o planeta. Para que você saiba o que está acontecendo no mundo, como a crise nos mercados poderá afetar sua vida e o que fazer com o seu dinheiro, ÉPOCA preparou um manual com as principais questões para entender este momento de grandes incertezas.

1. Como a crise começou?
Desde o século XVII, todas as crises financeiras são precedidas por bolhas. Desta vez, a bolha de crédito começou a se formar em 2001, depois da crise das empresas de internet. Sob Alan Greenspan, num período de 24 meses o Federal Reserve, banco central americano, derrubou a taxa de juros de 6% ao ano para 1% ao ano, para estimular a economia. Esse dinheiro fácil inundou o mercado, fez dobrar o valor das moradias e estimulou as empresas a emprestar sem critérios e sem garantias, com base em inovações do mercado financeiro. Wall Street aprendeu a empacotar hipotecas e outros débitos dos consumidores em títulos vendidos no mercado financeiro como papéis de primeira linha. Essa ficção financeira movimentou US$ 1,5 trilhão e ajudou os bancos de investimento a movimentar muito mais dinheiro do que poderiam em circunstâncias normais. Quando o preço das casas começou a cair e os endividados deixaram de pagar as prestações dos imóveis, tudo ruiu. As instituições financeiras com carteiras podres começaram a quebrar em abril de 2007 e não pararam mais. De lá para cá, o mercado tenta, sem sucesso, avaliar o tamanho do rombo coletivo e decidir quem é digno de confiança. Essa interrogação paralisou o mercado mundial de crédito e transformou a crise financeira americana numa crise da economia real.

2. Por que ela é tão grave?
Porque atingiu em cheio o coração do sistema financeiro, cada vez mais central no capitalismo. Sem o fluxo normal de crédito, a máquina da economia global fica asfixiada. “Tudo depende de crédito e confiança no sistema financeiro. Neste momento não vejo nem crédito nem confiança”, disse a ÉPOCA o economista americano Thomas Trebat, da Universidade Colúmbia, de Nova York. A revista The Economist compara o sistema financeiro ao encanamento de um edifício. Quando ele funciona, ninguém percebe. Quando entope, o mau cheiro é insuportável. Esta é a situação atual: o sistema parou, mesmo com os governos dos Estados Unidos, da Europa e do Japão injetando US$ 1,4 trilhão na tubulação. O custo dos empréstimos entre os bancos cresceu 16 vezes nos últimos 18 meses, porque as instituições financeiras não confiam uma nas outras e preferem ter dinheiro em caixa. Se os bancos não emprestam dinheiro entre si, também não emprestam para as indústrias, para os serviços e para os consumidores. “É seguro dizer que, enquanto os mercados financeiros não funcionarem normalmente, a crise financeira não vai terminar”, diz a Economist. “Até que a crise financeira acabe, a economia global não vai se recuperar”.

3. Qual é o tamanho da crise?
Em agosto de 2007, quando o Fed foi obrigado a injetar US$ 64 bilhões no mercado financeiro americano para desfazer o gargalo de confiança que paralisava os empréstimos entre os bancos, percebeu-se que a crise hipotecária tomara uma proporção dramática. Deste então se tenta dimensioná-la. O Fundo Monetário Internacional falou de imediato em custos de US$ 1,5 trilhão. O que então parecia um exagero hoje parece uma avaliação otimista. Só o governo americano já empenhou US$ 1,58 trilhão para tentar conter o desastre. E pode não ser suficiente. Calcula-se que a crise tenha pulverizado US$ 17 trilhões das Bolsas de Valores no mundo todo até a semana passada. É muito dinheiro – equivale a aproximadamente 13 vezes a economia brasileira e é mais do que a dos Estados Unidos e a do Japão juntos.

Essa é uma medida do problema. Outra, menos abstrata, é que já faliram 13 bancos neste ano nos Estados Unidos. Desapareceu um setor inteiro do mercado financeiro – os centenários bancos de investimento –, tragado por dívidas e incertezas. Se tivesse parado por aí, a crise já seria histórica. Mas ela foi além: secou o mercado de crédito mundial, derrubou o consumo nos Estados Unidos e congelou planos de investimento em todos os países. A economia global travou.

Empresas como Ford, Toyota e Honda enfrentam quedas de venda da ordem de 30% nos Estados Unidos. A General Electric não consegue rolar sua dívida de US$ 90 bilhões. Foi obrigada a pedir uma injeção de capital de US$ 3 bilhões ao investidor Warren Buffett. A Microsoft estava no Congresso americano na semana passada fazendo lobby pró-pacote, porque via que seus clientes no mercado financeiro estavam sumindo. Além de multissetorial, a crise é internacional. A Europa está socorrendo seus bancos na Inglaterra, na Irlanda e na Bélgica e se prepara para enfrentar uma forte desaceleração da economia. A China cortou a taxa de juros pela primeira vez em cinco anos para manter seu espetacular crescimento. O preço das commodities desabou, com a expectativa de recessão. O financiamento internacional às exportações desapareceu, ameaçando o comércio internacional e o equilíbrio financeiro de países emergentes como o Brasil.

4. Qual será seu custo?
A conta final para a economia planetária poderá chegar a astronômicos US$ 4,5 trilhões, ou quase 8% do PIB global. Os primeiros a perder são os sistemas bancários americano e europeus. Eles podem ver desaparecer US$ 3 trilhões, se forem contabilizados a redução das linhas de crédito das montadoras, o colapso dos cartões de crédito, a redução de crédito entre os bancos e outros prejuízos não precificados. Também perderão os bancos centrais com títulos dolarizados, basicamente China, Hong Kong e Japão. Como a aprovação do pacote econômico de emergência significará um aumento do déficit fiscal americano, estudos prevêem uma possível desvalorização do dólar. Esses bancos centrais deverão amargar, assim, um prejuízo de US$ 500 bilhões nos títulos referenciados em dólares. Some-se a isso o pacote aprovado pelos Estados Unidos, num total de US$ 850 bilhões – conta que será paga pelos contribuintes –, e chega-se à absurda soma de US$ 4,35 trilhões, o custo estimado da turbulência. Detalhe: ele não leva em conta os prejuízos decorrentes das perdas de empregos, vendas, encomendas, exportações, enfim, da freada que a economia mundial poderá sofrer em virtude desse caos.

5. Faz sentido comparar esta crise com a de 1929?
Medida pelas suas conseqüências até o momento, a crise hipotecária não faz sombra aos eventos da década de 30. A Grande Depressão quebrou 1.800 bancos nos Estados Unidos, derrubou em 20% o PIB das sete maiores economias do mundo, provocou desemprego de até 33% nos EUA e na Alemanha e fez o comércio mundial encolher em dois terços. A crise de 29 foi uma tragédia social e econômica sem paralelo.

Hoje, o cenário é outro. Os governos dos EUA e da União Européia estão agindo com rapidez e energia para debelar a crise financeira. Há disposição em evitar que ela se transforme em crise social. Calcula-se que, desde julho de 2007, o governo dos EUA já tenha lançado US$ 2 trilhões na economia, na tentativa de evitar que ela mergulhe em depressão. Em 29, a primeira medida do governo americano para aumentar a liquidez veio três anos depois da explosão da Bolsa.

Mesmo assim, há semelhanças. A crise atual começou nos EUA e está se espalhando. Surgiu como crise financeira localizada e ganhou a economia real. Parecia controlável com interferências pontuais do governo, mas já engoliu montanhas de dinheiro sem dar sinal de arrefecer. É possível que o mundo esteja presenciando o início de algo maior. O ajuste no mercado financeiro pode fugir ao controle, ferindo o sistema bancário e as empresas que dele dependem. Se essa engrenagem de destruição de valor entrar em movimento, estará montado o cenário para o que a revista Time chamou de Depressão 2.0 – uma crise em escala global capaz de rivalizar com a hecatombe dos anos 30.

6. Quanto tempo ela vai durar?
O estrangulamento de crédito no mercado internacional e a falta de confiança entre bancos podem ser atenuados em poucas semanas. “Isso acontecerá se o pacote americano de socorro for bem-aceito pelo mercado”, afirma o economista Fernando Sotelino, ex-presidente do Unibanco e professor da Universidade Colúmbia, de Nova York. Mas a retomada da atividade a pleno vapor levará mais tempo. “O problema vai durar no mínimo até meados do ano que vem”, diz o economista americano Nouriel Roubini. Voltar ao crescimento econômico em níveis elevados pode levar mais de um ano. Setores considerados motores da economia, como a construção civil e o automobilístico, dependem de crédito e atravessam forte desaceleração. Como os Estados Unidos são a maior economia do mundo, a diminuição do consumo de sua população provocará queda nas importações provenientes de países como China, Índia e Brasil.

7) Qual é o efeito da globalização?
A globalização criou canais de comunicação entre todos os países e setores econômicos. Fez do isolamento e da blindagem uma quimera. Os países serão mais afetados quão maior for a sua conexão ao sistema financeiro americano, quão mais ampla for a abertura da sua economia e quão maior for o grau de endividamento do seu sistema financeiro. A Europa tem ligações umbilicais com Wall Strett. Em países como o Reino Unido se opera em graus elevados de endividamento. Aí a crise vai ser severa. A Ásia é dependente do mercado de consumo americano. O sistema financeiro de alguns países – como o Japão – funciona em íntima sintonia com Nova York, mas com grau de endividamento menor. A crise será menos intensa. No mundo emergente, misturam-se realidades distintas. A China está perigosamente vinculada ao mercado financeiro americano: um quinto das reservas do país está em títulos dos gigantes falidos das hipotecas, Fannie Mae e Freddie Mac. Nenhum país tem tanto a perder com um eventual colapso do mercado financeiro. Na América Latina, países como o Brasil vão sofrer com a falta de crédito e o encolhimento do mercado de commodities.

Para ter uma idéia da extensão da atual crise financeira, já “evaporaram” do mercado acionário global cerca de US$ 12 trilhões do fim de 2007 até o fim de agosto, último dado oficial disponível, segundo a Federação Mundial de Bolsas de Valores. Nesse período, o valor de mercado de todas as ações negociadas no mundo caiu de US$ 61 trilhões para US$ 49 trilhões. Em setembro, é provável que outros US$ 4 trilhões ou US$ 5 trilhões tenham virado pó nos pregões em todo o planeta. É o equivalente a mais de duas vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, de R$ 1,9 trilhão em 2007.

8. Qual será o efeito no Brasil?
O comércio internacional deverá perder vigor e nenhum país ficará livre de sofrer algum impacto no ano que vem. “Nos últimos anos, o Brasil foi muito favorecido pelo forte crescimento da economia mundial”, diz o economista José Júlio Senna, ex-diretor do Banco Central. “É evidente que, se a economia mundial piorar, a situação por aqui vai piorar também”. No começo, os problemas estiveram confinados ao campo financeiro, castigando principalmente quem investe em ações. Nas últimas semanas, a crise começou a contagiar o setor produtivo, atingindo duas das principais alavancas do crescimento brasileiro: as exportações e o crédito externo. Com a crise, tanto as exportações quanto o crédito encolherão. Para amenizar a situação, nos últimos dias o governo adotou algumas medidas. Liberou R$ 5 bilhões para financiar os agricultores. O Banco Central injetou mais de R$ 36 bilhões na economia para ajudar bancos pequenos e médios que antes buscavam crédito barato no exterior. “A janela externa para eles fechou”, afirma o economista Alexandre Póvoa, da Modal Asset Management.

9. Haverá muito estrago?
Neste momento, ninguém sabe dizer. Todos os analistas afirmam que, ao contrário do que pode acontecer com outros países, o Brasil não deverá passar por uma recessão. Haverá, sim, uma freada no ritmo de crescimento da economia. Depois de avançar algo em torno de 5% neste ano, o crescimento econômico deverá sofrer uma desaceleração e ficar em torno de 3% no ano que vem.

10. Por que o Brasil está mais protegido hoje?
A economia brasileira hoje é mais sólida do que até poucos anos atrás. A maior parte da expansão do PIB brasileiro vem do mercado interno. Apenas cerca de 15% vêm das exportações, área mais afetada pela crise. “O Brasil é muito voltado para o mercado interno”, afirma o economista Ilan Goldfajn, ex-diretor do Banco Central. “Isso torna o país menos sensível aos efeitos desta crise”. A confiança do investidor estrangeiro no Brasil, que sempre causou instabilidade, não é mais um problema grave. O país tem US$ 206 bilhões em reservas, volume suficiente para pagar suas dívidas. “Não vai haver desconfiança sobre a capacidade do Brasil de pagar algum débito”, diz Goldfajn. “Nas crises anteriores, as reservas do Brasil equivaliam a lutar com uma espingarda. Agora, o Brasil tem uma metralhadora M-16”, afirma um economista de um dos maiores bancos do país. Além de ter como pagar, o Brasil deve menos. Anos atrás, crises como essa provocavam uma disparada no preço do dólar e da dívida. Hoje, a dívida em dólar não só está zerada, como o Brasil mudou de lado – é credor em dólares. “Em outros tempos, a esta hora o Brasil estaria um pandemônio”, diz um economista.

11. O que é preciso fazer para resolver a crise?
A palavra-chave em qualquer crise financeira é confiança. Se o pacote do governo americano for bem-sucedido, ele pode destravar os empréstimos no sistema bancário e permitir que a economia volte a respirar e caminhar. Será o primeiro passo. O próximo, mais demorado, será fazer com que empresas e governos ajustem suas operações aos padrões mais limitados de financiamento. O sistema terá de expurgar suas dívidas e papéis ruins, para descobrir qual é o tamanho real da economia no início do século XXI. Tudo isso terá de ser monitorado de perto pelos governos. De carteira na mão, eles devem estar dispostos a intervir para resgatar os afogados e evitar o pior – uma quebradeira desordenada, desemprego e recessão profunda. O desastre pode custar mais caro que o socorro.

12. Qual é a lógica do plano de salvamento americano?
Com o plano, o governo americano pretende comprar os papéis podres no mercado e injetar dinheiro novo nos bancos. A aposta é que a confiança, aos poucos, retorne ao sistema financeiro. Numa analogia, o crédito exerce para o funcionamento da economia a mesma função que o oxigênio cumpre para o bom funcionamento do corpo humano. No momento, as veias estão bloqueadas, e o sistema econômico sofreu uma parada cardíaca. O pacote é como um balão de oxigênio para que o sistema, aos poucos, volte a respirar normalmente.

13. Ele vai acabar com a crise?
O mais provável é que o pacote ajude a atenuar a crise, mas não acabe com ela. Um dos motivos é que a crise não é apenas mais americana, mas passou a ser global. Na semana passada, houve intervenções de governos de sete países da Europa para salvar ou nacionalizar bancos. O pânico nos mercados financeiros atingiu também Rússia, Ásia e Índia. Outro motivo é a que crise financeira também já se alastrou para a economia real. Os EUA estão à beira de uma recessão. Em setembro, o índice que mede a atividade industrial no país caiu para o menor patamar desde os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. O ideal é que os bancos que tiveram lucros altíssimos durante a fase de exuberância dos mercados financeiros e correram riscos exagerados paguem por seus erros. Mas é ingenuidade imaginar que um colapso dos bancos não vai atingir a economia real e o cidadão comum. Por isso, é necessária certa dose de pragmatismo. Quando os mercados financeiros falham, a melhor atitude é uma intervenção rápida do governo para que eles voltem a funcionar. Na crise de 1929, não houve essa intervenção, os bancos entraram em falência em massa e o mundo entrou numa depressão profunda.

14. Por que houve tamanha resistência à aprovação do pacote?
Lá nos EUA, como no Brasil, é impopular socorrer bancos. Para 84% dos americanos, os responsáveis pela crise são os executivos de bancos e seus bônus estratosféricos. Como o pacote original não propunha medidas punitivas a esses executivos, milhões de americanos se sentiram injustiçados. A impopularidade da ajuda a Wall Street foi agravada pelo fato de o plano ter sido concebido pelo governo Bush, o mais impopular da história americana. Outro complicador foi a discussão do pacote durante um ano eleitoral.

15. O plano americano é igual ao Proer brasileiro?
Não. Há uma diferença fundamental entre o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), implementado pelo governo Fernando Henrique Cardoso entre 1995 e 1997, e o plano americano. O Proer tinha um alvo preciso: bancos cuja principal fonte de lucros era a hiperinflação brasileira e cujos ativos ruíram depois do sucesso do Plano Real, em 1994. “Era um problema localizado em alguns bancos grandes e outros de porte médio”, diz o economista Carlos Eduardo de Freitas, ex-diretor do Banco Central. “O problema nos EUA é muito mais grave porque todo o sistema financeiro foi contaminado por papéis podres.” O Banco Central brasileiro pôde fazer uma ação de saneamento cirúrgica e relativamente barata – o Proer injetou, entre 1994 e 1997, R$ 20,4 bilhões, cerca de 2,7% do PIB brasileiro médio da época. A retirada dos créditos podres do sistema financeiro nos EUA exigirá uma ação muito mais ampla e cara. Os US$ 850 bilhões do pacote do governo Bush equivalem a 8,5% do PIB americano.

16. Por que alguns bancos são socorridos e outros não?
Aparentemente, o governo americano decidiu usar o dinheiro do contribuinte apenas em instituições financeiras que, se quebrassem, poderiam causar estrago no mercado. Foi o caso da seguradora AIG, das agências de crédito imobiliário Fannie Mae e Freddie Mac, mas não do banco de investimento Lehman Brothers, que foi à falência.

17. Será que mais bancos ainda vão quebrar lá fora?
É provável que sim. O pacote de US$ 850 bilhões não vai resolver tudo. Imagine que a crise financeira é como um incêndio de grandes proporções numa floresta. O pacote representa o sucesso da ação dos bombeiros na luta para debelar o incêndio. Mesmo assim, sempre sobram focos isolados de fogo.

18. Quem ganhou e quem perdeu com a crise?
A crise está provocando uma mudança radical na correlação de forças do sistema financeiro internacional. Ninguém ganhou, mas alguns perderam menos. Entre os grandes conglomerados financeiros privados internacionais, é o caso do HSBC, do Reino Unido, e do Santander, da Espanha (que comprou recentemente o ABN Amro Real no Brasil). Eles conseguiram passar praticamente incólumes pela crise e ganharam importância relativa no cenário econômico global. Os grandes perdedores foram os bancos de investimento americanos (leia o quadro nesta página).

19. Por que os bancos emprestavam dinheiro a quem não podia pagar?
A falta de critérios na concessão de empréstimos imobiliários nos Estados Unidos passou a ser a regra do mercado nos últimos anos por várias razões. Uma delas, talvez a mais evidente, foi a ganância. Sobrava dinheiro no mercado, os analistas cobravam ganhos cada vez mais altos dos bancos e os executivos dependiam da alta do lucro e das ações para receber seus bônus. Muitos analistas dizem também que a concessão de empréstimos para quem não tinha condições financeiras de obtê-los não poderia ter ocorrido sem a estreita colaboração dos funcionários da linha de frente, que faziam o corpo a corpo com a clientela. De outra forma, não seria possível imigrantes ilegais conseguirem crédito sem a devida documentação. Diz-se que alguns brasileiros que viviam nos EUA de forma ilegal teriam conseguido obter empréstimos de até US$ 50 mil em dinheiro com lastro em seus financiamentos imobiliários. Eles teriam voltado ao Brasil com o dinheiro no bolso e abandonado os imóveis que haviam financiado lá.

20. O mercado de capitais tinha se transformado em fonte de recursos para as empresas brasileiras. E agora?
Nos últimos anos, houve um salto nas ações e nos outros papéis vendidos por empresas no Brasil. Em 2003, nenhuma empresa abriu capital na Bolsa. Em 2005, foram nove. Esse número saltou para 26 em 2006 e 50 no ano passado. Em 2007, as empresas captaram mais de R$ 32 bilhões no mercado de capitais, R$ 1 bilhão a mais do que havia sido emprestado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Esse movimento parou. Neste ano foram apenas cinco as novas empresas a abrir capital na Bolsa. “Os dois últimos anos foram atípicos, uma verdadeira loucura”, diz um economista de um banco de investimentos. Agora, a atividade só deve ser retomada no segundo semestre de 2009. “A crise pode ser um teste para o Brasil”, diz Ricardo Scavazza, sócio do Pátria Investimentos. “Depois que ela passar, o investidor estrangeiro pode ter mais confiança e injetar mais recursos no país”.

21. As empresas vão manter seus projetos de investimento no Brasil?
Na semana passada, a indústria brasileira de autopeças, que previa investimentos de US$ 2,2 bilhões para o ano que vem, anunciou que poderá rever seus planos. Mas a Fiat, cliente dessas empresas, anunciou que pretende manter seus investimentos de R$ 6 bilhões até 2010. “Os empresários ficam com receio de investir, usam o que têm nos estoques para não comprar mais matéria-prima. Ninguém quer colocar a cabeça para fora”, diz Walter Sacca, presidente da Plastwal, empresa que fabrica chapas de PVC usadas na fabricação de embalagens e cartões de crédito. Os clientes da Plastwal já diminuíram o número de pedidos em 20%. Os grandes projetos, por enquanto, parecem preservados. Na semana passada, o grupo Gerdau anunciou a intenção de manter investimentos de R$ 4 bilhões nos próximos três anos. “É muito difícil que haja postergação ou freio nos investimentos já em andamento em infra-estrutura e na indústria de base”, diz Paulo Godoy, presidente da Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústrias de Base (Abdib).

22. As exportações serão prejudicadas?
Sim. O mundo deverá crescer menos, portanto, os clientes do Brasil no exterior reduzirão suas importações. A queda no consumo tende a derrubar também o preço das mercadorias brasileiras, entre elas um grupo que andava muito valorizado nos últimos tempos: os alimentos, metais e combustíveis, ou commodities. Os preços desses produtos bateram recordes neste ano. No caso brasileiro, o esfriamento do comércio internacional poderá ser compensado por outros fatores. O mais relevante é a manutenção do crescimento, embora em ritmo menor, de países emergentes. Para a China, grande cliente de produtos brasileiros, imagina-se que o ritmo de crescimento diminua de 10% para cerca de 8% ao ano.

23. Por que o dólar subiu tanto? É hora de comprar?
Com a instabilidade econômica, as multinacionais remetem dinheiro para suas sedes no exterior e os investidores vendem ações para cobrir prejuízos ou colocar o dinheiro em aplicações que consideram mais seguras, principalmente títulos do Tesouro americano. Com a saída do equivalente a R$ 17 bilhões nos últimos quatro meses, a procura pelo dólar aumentou, elevando sua cotação. “Os títulos do governo americano, por mais estranho que possa parecer, ainda são considerados os mais seguros do mundo no meio dessa crise criada pelos EUA”, diz Goldfajn, ex-diretor do BC. Mas comprar dólar para guardar, enquanto as aplicações de renda fixa pagam juros reais (descontada a inflação) de 8% ao ano, pode não ser bom negócio. “Só é aconselhável comprar dólares se você tem dívida em dólar e quer se precaver de possíveis novas altas. Ou, então, se você vai viajar para o exterior em breve”, diz Natan Blanche, diretor da Tendências Consultoria. “Se esse não for seu caso, não compre, a menos que tenha uma equipe de economistas analisando as cotações para você diariamente”.

24. Qual será o impacto da crise na inflação?
A desvalorização do real tende a provocar um aumento nos preços, já que produtos e matérias-primas importados ficam mais caros e a indústria procura repassar o aumento dos custos. Mas a maioria dos economistas acredita que a inflação não será motivo de preocupação no fim deste ano, nem em 2009. Um dos motivos é que ela está em desaceleração por causa da boa oferta de alimentos. Outra razão é a desaceleração da economia brasileira, causada pela crise financeira global. De acordo com as projeções do economista Carlos Thadeu de Freitas, ex-diretor do Banco Central, a inflação deverá ficar em torno de 5% em 2009.

25. As empresas vão demitir?
Depende muito do tamanho e da duração da crise. Hoje, nada aponta para uma onda de demissões nas empresas. Mais provável que demissões é uma redução nas contratações. “Se um industrial deixa de comprar uma máquina porque não há crédito, ele deixa de precisar de funcionários para operá-la”, diz Alexandre Marinis, economista da Mosaico Consultoria. “O ajuste de pessoal é sempre o último ato a ser realizado, pois envolve custos e a perda de mão-de-obra adaptada à necessidade da empresa”, diz Paulo Skaf, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

26. O que devo fazer com meus investimentos agora?
O melhor é não ficar pulando de galho em galho no momento e manter o dinheiro onde ele está. Ainda há muita turbulência e o risco de “perder o pé” é grande. É hora de proteger o patrimônio e não de tentar multiplicá-lo. Mesmo quem tem dinheiro aplicado na Bolsa, e não vai precisar dele no curto prazo, deve tentar manter a calma. Vender ações agora significa amargar prejuízo. A História mostra que as oscilações de curto prazo na Bolsa tendem a ser mais do que compensadas no longo prazo. “As ações que estão com os preços baixos agora voltarão a subir”, diz William Eid, professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo.

27. Quando a Bolsa voltará a subir?
Ninguém é capaz de dizer. Alguns economistas afirmam que a situação estará normalizada até o começo do ano que vem. Historicamente, as crises financeiras provocam grandes perdas no curto prazo, mas elas se diluem no longo prazo. Um levantamento da Ibbotson, empresa americana de informações financeiras, revela que alguém que tivesse investido um dólar em ações nos Estados Unidos em 1926 teria US$ 2.634,41 em 30 de setembro de 2008. Isso mesmo depois da crise de 1929, da Segunda Guerra Mundial e de outros momentos de instabilidade.Os ganhos no longo prazo na Bolsa podem ser vistos como tendência universal.

28. Como ficam os juros?
Os tempos em que era possível ganhar no mercado financeiro sem correr praticamente nenhum risco podem estar de volta. O Banco Central voltou a elevar as taxas de juro nos últimos meses, depois de um longo ciclo de baixa. Isso beneficiou aplicações como os CDBs e os fundos DI e de renda fixa, que se tornaram ainda mais atraentes. Hoje, o ganho real dos juros sobre a inflação é estimado em 8%.

29. O ouro não é uma boa opção nos momentos de crise?
Durante muito tempo, o ouro foi considerado uma boa forma de preservar o patrimônio em momentos de turbulências. Hoje, não é mais assim. As cotações oscilam muito e podem provocar grandes perdas. O investimento em ouro não é indicado para pequenos investidores por ser complexo e caro. O metal precisa ficar sob custódia de uma operadora, e o comprador recebe apenas um certificado de compra. “Desde 1994, temos uma moeda forte o bastante para não precisar recorrer a esses recursos”, afirma Blanche, da Tendências. “O pequeno e o médio investidor têm ótimas opções, como os CDBs, os fundos de renda fixa e até mesmo a Bolsa, se quiser correr riscos.”

30. Como ficam minhas dívidas?
Se suas dívidas não foram contraídas com juros prefixados, com o valor das prestações definido no momento da compra, provavelmente elas já estão mais caras. Se você está no vermelho no cheque especial, convém conversar com o gerente do banco para pedir um empréstimo pessoal. As taxas de juro do empréstimo pessoal são cerca de 30% menores que as do cheque especial. A alta recente dos juros desestimula também novas compras a prazo. A taxa média de juros para pessoa física era 7,39% ao mês em agosto e passou a 7,45% ao mês em setembro. Os prazos dos financiamentos também ficaram mais curtos. Até a semana passada, o consumidor conseguia parcelar uma geladeira de R$ 1.500 em 36 vezes, com juros de 6,17% ao mês. Hoje, o prazo caiu para no máximo 24 meses, e os juros passaram para 6,23% ao mês. Isso implica aumento de 16% no valor das prestações.

Drama brasileiro
Como uma típica empresa nacional está sendo atingida pela crise econômica mundial

PONTOS NEGATIVOS

Para instalar uma nova fábrica, a Plastwal, fabricante de chapa de PVC, matéria-prima para embalagens e cartões de crédito, fez financiamento no banco belgo-holandês Fortis, que agora está em má situação, socorrido por governos europeus
A crise também amedrontou os clientes da Plastwal. Os pedidos caíram 20% neste mês na comparação com o mesmo período de 2007. “Na crise, as empresas evitam comprar e esperam esgotar os estoques”, diz Walter Sacca, presidente da empresa

PONTOS POSITIVOS

Mas a crise também tem um ponto positivo. O dólar mais alto favorece a empresa no mercado interno. “As importações diminuem. O dólar baixo me fazia competir com várias empresas estrangeiras”, diz Sacca

31. Os bancos continuarão a financiar as compras de casas e carros?
A princípio, sim. Mas, como nas demais modalidades de crédito, os prazos estão diminuindo e os juros aumentando. Há três semanas, os bancos faziam financiamentos de carros em até 72 meses. Agora é difícil comprar em 60 meses. O crédito já é automaticamente negado a correntistas novos. Ainda assim, o mês de setembro de 2008 registrou 30% mais vendas de carros do que o mesmo mês de 2007, de acordo com a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave). “A crise pode não ter afetado o desempenho das vendas de automóveis ainda”, afirma Miguel de Oliveira, economista da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac). “Mas isso deve acontecer em maior grau no setor automobilístico e em menor grau no setor imobiliário.” No caso da casa própria, alguns bancos já reduziram o prazo máximo dos financiamentos de 30 para 20 anos. “O porcentual de juros para financiamentos de casas ainda está em torno de 10% a 12% ao ano, o que é um bom negócio”, diz Vitor Bidetti, diretor da companhia hipotecária de financiamento Brazilian Mortgages. “Taxas maiores que essas não são desejáveis”.

32. Quem é o culpado pela crise?
O déficit do governo americano precisava ser financiado pelo resto do mundo. Houve um excesso de liquidez em decorrência disso, muito dinheiro girava pela economia. Num ambiente de juros baixíssimos (chegou a 1%), as empresas procuraram ganhos extraordinários em títulos especulativos. O mercado imobiliário se mostrou o porto ideal para essa aposta. Imóveis em Nova York tiveram os preços multiplicados por 12 nos últimos oito anos, numa especulação sem igual na história. Havia fundos alavancados em 48 vezes – como se, para cada US$ 48 emprestados, eles tivessem apenas US$ 1 em caixa. “Essa crise é resultado de dez anos de irresponsabilidade do governo americano, que começou na bolha das empresas pontocom, passou pelo aumento absurdo de gastos públicos na Guerra do Iraque e desaguou nesse colapso de supervisão do sistema bancário”, diz o economista e consultor Renê Garcia, ex-presidente da Susep, órgão regulador do mercado segurador do país. Também houve falhas no sistema americano de supervisão financeira. Há vários organismos se sobrepondo e, ao mesmo tempo, nenhum que responda pelos riscos cruzados. “Quando há vários organismos supervisionando, ninguém é realmente responsável por nada. O poder de fiscalização deveria estar todo concentrado no Fed, mas não estava”, diz o economista e ex-diretor do Banco Central Carlos Eduardo Freitas.

33. Alguém vai para a cadeia?
As chances tendem a zero. Apesar da forte indignação da população americana com a crise financeira, dificilmente dirigentes do governo ou altos executivos de bancos serão trancafiados. De acordo com Fernando Sotelino, de Colúmbia, não houve crime configurado. “Mesmo as operações arriscadas tiveram o amparo legal dos órgãos reguladores americanos. Portanto, não tem sentido que pessoas sejam presas se fizeram tudo dentro da lei”, afirma. Até agora, a punição mais severa prevista aos executivos das grandes instituições financeiras é o corte em seus salários e benefícios.

34. A crise poderia ter sido evitada?
Certamente. Houve uma sucessão de erros do governo americano. O primeiro foi manter a taxa de juros da economia baixa demais, com o objetivo de estimular o crescimento, após a crise de 2001. A isso se somou uma atitude demasiadamente casual em relação à supervisão do sistema. “O descaso na supervisão do governo americano em um momento de euforia foi fundamental para chegar a uma situação de descontrole dos bancos”, diz o economista Roberto Troster, da consultoria Integral Trust. “Havia avaliação precária dos perigos envolvidos nas operações”. As agências de classificação de risco também não cumpriram seu papel. Não mudaram padrões de avaliação para aferir com propriedade a segurança de títulos negociados. A seguradora AIG, estatizada pelo governo americano, foi ao chão com a nota AA em punho, uma das melhores possíveis antes da crise.

35. O sistema financeiro precisa ser mais regulado?
Embora a crise financeira tenha estimulado muitos analistas a dizer que ela aconteceu por falta de controle adequado das atividades dos bancos americanos, é difícil afirmar isso com segurança. O mercado financeiro costuma usar toda a criatividade para contornar as limitações legais, sem necessariamente cair na ilegalidade. Nada indica que, mesmo que o mercado fosse mais regulado, a crise atual poderia ter sido evitada. Apesar de ter havido uma grande desregulamentação da economia americana nos últimos 30 anos, principalmente nos setores de telefonia, aviação e transportes terrestres, nada foi feito no sistema financeiro. Toda a legislação adotada nesse período fez exatamente o contrário: aumentou a regulamentação dos bancos.

No Brasil, a situação é diferente. O sistema financeiro é bastante regulado. Por isso, não há, de acordo com os financistas, necessidade de aumentar ainda mais o controle feito pelo Banco Central. “Os outros países criaram os problemas. Agora, eles que resolvam os problemas que criaram”, afirma o presidente do BC, Henrique Meirelles. “Hoje, o sistema financeiro brasileiro está pronto para crescer”.

36. Quem vai pagar pelos prejuízos?
Os cidadãos americanos já estão pagando parte da conta. É o dinheiro obtido pelo recolhimento de impostos que banca a compra de papéis podres de instituições financeiras falidas. Estima-se, até agora, que cada americano jogará quase US$ 3 mil na tentativa de estancar a crise. “Colocaram os investimentos de risco na mão dos contribuintes. Como nenhum investidor privado quer correr riscos, passaram aos contribuintes. É monstruoso”, afirmou o prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz. Com a provável desaceleração econômica, a tendência é haver corte de empregos e diminuição na renda, de Nova York a Pequim. Investidores no mercado acionário também pagam a fatura ao ver o preço de suas ações despencar. Só no Brasil, de acordo com o estudo de uma consultoria econômica, o valor das empresas na Bolsa de Valores caiu R$ 500 bilhões ao longo de 2008.

37. Essa crise pode mesmo significar o fim da hegemonia americana?
A presença americana no mundo é gigantesca. Os americanos geram em serviços e produtos um quarto do PIB mundial. A redistribuição desse poderio econômico ao longo do tempo é vista como inevitável. “Os Estados Unidos já vêm perdendo força nos últimos anos”, diz Freitas, ex-diretor do BC. “O crescimento da China vem mudando o equilíbrio entre os poderes”. Mas a redução aparente do poderio americano tem de ser medida contra sua evidente liderança global. Do presidente Lula ao primeiro-ministro da China, todos olham para os Estados Unidos à espera de uma solução para a crise. O pacote do governo Bush demonstra que os EUA são capazes, como nenhum outro país, de fazer um enorme sacrifício financeiro para manter a sua economia – e a do resto do mundo à tona.

38. O que vai mudar no mundo depois da crise?
O mais provável é a adoção de regras mais rígidas para operações financeiras. “Converso com colegas de governos estrangeiros sobre um novo conjunto de normas com grande freqüência”, diz um importante economista do governo brasileiro. Espera-se, assim, que o mundo saia da crise – quando sair – com um mercado financeiro mais regulado, menos propenso à alavancagem e operando com níveis de endividamento mais baixos. Isso não significa, necessariamente, uma boa notícia para a economia. As taxas de crescimento obtidas nos últimos anos são resultado da abundância de crédito e da abundância de risco. Após a turbulência, o mundo deverá se acostumar a um ritmo de crescimento mais moderado.

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