sexta-feira, 7 de novembro de 2008

O Estado de São Paulo

Contra a crise, licença para matar?

Dionísio Dias Carneiro*

O debate em torno da crise que lança sua sombra sobre a economia mundial está sendo prejudicado por dois diagnósticos extremos, que se manifestam com freqüência no Brasil, mas estão presentes em toda parte: "o fim do mito dos mercados desregulados" e a "má regulação e a política expansionista". A resultante nula desse cabo-de-guerra ideológico é a impressão de que não há uma agenda clara para a reunião convocada por George W. Bush para o dia 15, que poderia marcar o começo do fim da crise.

Não faltam sugestões, sobram confusões. De um lado, a impressão de que pouco aprendemos nos últimos 70 anos sobre como lidar com uma crise sistêmica. De outro, há uma confusão entre medidas administrativas e contábeis com estratégias macroeconômicas.

As propostas de respeitáveis economistas de todo o mundo ilustram a mistura. Três dos principais especialistas em bancos e regulação financeira, Douglas Diamond, Anil Kashyap e Raghuran Rajan, da Universidade de Chicago, propuseram um "time out" para que os ativos das instituições financeiras fossem "corretamente avaliados", o que equivaleria a uma interrupção impensável das transações, do tipo que conhecemos durante as primeiras semanas do Plano Collor. Robert Rubin, em artigo no International Herald Tribune do dia 4, prega um "pragmatismo equilibrado" contra as falsas dicotomias que enxerga nas propostas de política macroeconômica (déficit maior versus austeridade, estímulos ao emprego versus proteção ao trabalhador e protecionismo e regulação versus mercados mais livres). Um gelo fino no caminho do governo Obama, que poderá justificar toda sorte de desatinos em outros governos, mais propensos ao "pragmatismo" do que ao "equilíbrio".

Robert Rubin e Paul Volcker são a esperança de que o governo Obama possa encontrar um caminho para desentupir os canais de crédito sem gerar um forte desequilíbrio inflacionário. Mas o que há de sensato na proposta de estratégia macroeconômica pode ser usado, perfeitamente, pelos aproveitadores da confusão ideológica como uma espécie de "licença para matar". Ou seja, um sinal verde para que os governos joguem por terra o que foi aprendido na onda longa de prosperidade dos últimos 40 anos, caracterizada pela evolução de instrumentos, diagnósticos e estratégias que permitiram que as crises tenham sido mais breves e que a volatilidade das variáveis reais (não confundir com as financeiras) tenha diminuído consideravelmente. O que fez crescer o mundo foi o maior papel dos mercados, e não a estatização dos investimentos. Mas os fantasmas dos anos 60 estão sendo invocados pelos que nada aprenderam nos últimos anos, e pregam o retorno às idéias que nem geraram riqueza nem incorporaram as massas à prosperidade.

Mesmo em meio ao desabamento desastroso dos mercados financeiros, há sinais de progresso. Os bancos centrais têm coordenado a diminuição dos juros e agido diretamente sobre o interbancário, o que já permitiu uma redução do spread da Libor, de 4,6 para 2,10 p.p., desde 10 de outubro. Usam a flexibilidade permitida pelas estratégias de estabilização para reativar os sistemas bancários. O FMI vai socorrer os países com problemas de balanço de pagamentos, de modo a desincentivar as medidas de defesa individual que agravam os problemas do sistema global. O próximo passo é a adaptação das estratégias fiscais de modo a fazer uso da política anticíclica, seja via redução de impostos, seja via aumento seletivo de gastos.

Mas a agenda do G-20 continua a requerer a definição de pontos importantes como os mecanismos internacionais de empréstimos interbancários não seguros, a exemplo do que se faz em emergência nos sistemas nacionais. Os mercados de derivativos se transformaram em vilões, mas é sua regeneração que deve ocupar o centro das atenções, especialmente o aumento do papel das bolsas de futuros na liquidação e na garantia dos contratos. Willem Buiter propôs a designação de um "contraparte de última instância", que pode ou não ser tarefa atribuída aos bancos centrais.

Não será, portanto, por falta de conhecimento que as autoridades monetárias e regulatórias deixarão de atuar. Mas por sobra de confusão, diante do revigoramento oportunista das forças do atraso, que podem dizimar o conhecimento acumulado e atrasar as discussões que podem contribuir para abreviar os efeitos devastadores da atual crise.

*Dionísio Dias Carneiro, economista, é diretor da Galanto Consultoria e do IEPE/CdG

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