segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Custo Brasil - Histórias

Carlos Alberto Sardenberg

---As vítimas da legalidade--

Com esse título, tratamos aqui, há duas semanas, de algo que acontece por toda a atividade econômica brasileira: quem está legal, sofre rigorosa fiscalização, mas essa mesma fiscalização leva tempo para apanhar o ilegal.
Contamos alguns casos, leitores colaboraram com outros. Eis as histórias, exemplares no mau sentido:

25 protocolos
A Receita Federal emitiu 25 de notificações sobre inconsistências nas compensações de impostos feitas por um cliente do escritório de advocacia de Eduardo Fleury, de São Paulo. Para resolver o problema, seria bastante simples, diz o advogado, se a empresa pudesse retificar as declarações. Mas não podia, era preciso apresentar defesa.
E aí começa o problema maior. Seria uma defesa para cada notificação, logo, 25 procurações para 25 processos. É preciso protocolar cada processo. Para isso, um funcionário precisa entrar na fila para retirar uma senha, com a qual vai protocolar os processos.
Mas cada senha dá direito a protocolar apenas três recursos. Resultado, o escritório teve de enviar oito pessoas, entre estagiários e advogados, para pegar as senhas e protocolar. Cada funcionário gastou 4 horas entre deslocamento e filas. E sabe no que consiste o protocolo?
Um carimbo!
Segundo a pesquisa “Fazendo Negócios”, do Banco Mundial, uma empresa brasileira gasta em média cerca de 2.600 horas/ano de trabalho para manter em dia suas obrigações fiscais. Naquele caso foram 32 horas só para obter um carimbo. Quer dizer, 25 carimbos.


Lixeira de pedal
Fernanda é dona de uma academia de ginástica em Niterói. Ano passado, além das fiscalizações de rotina, mensais, recebeu uma extra da Vigilância Sanitária, que deixou 20 exigências. Por exemplo: as lixeiras tinham de ser daquelas com pedal, obrigatoriamente. Fernanda fez tudo que lhe pediram, documentou tudo em mais de 50 folhas e foi à repartição.
Primeira sensação: as condições de higiene ali não passariam na fiscalização. Primeira surpresa: a funcionária disse que não podia entregar nenhum documento que registrasse o recebimento da papelada. Apenas entregou um protocolo referente a “cumprimento de exigências”. Mas, o alvará de funcionamento foi revalidado para 2009, de modo que Fernanda entendeu estar tudo ok.
No final de novembro agora, porém, apareceu por lá um fiscal da Vigilância Sanitária, que aplicou uma multa de 890 reais. Fernanda volta à repartição e fica sabendo que no ano passado não havia entregado uma certa “justificativa”. Aquelas 50 folhas!

Sem burocracia
Em dezembro de 2007, o Jornal da Globo fez uma reportagem especial contando a história de Eliane Portela, que havia instalado uma lan house na cozinha de sua casa, na favela de Heliópolis, em São Paulo.
Era um sucesso de público e de renda. Havia mudado a vida da moça. Tratei do caso no meu livro (“Neoliberal, não. Liberal”, editora Saraiva), apresentando-o como o triunfo do mercado privado e do livre empreendimento.
Pois bem, saiu neste mês uma pesquisa com base na PNAD dizendo o seguinte: no Norte e Nordeste, regiões mais pobres do país, mais da metade das pessoas que acessam a internet o fazem em lan house. No Brasil todo, o acesso em lan house é o segundo, depois do acesso domiciliar e à frente do acesso no trabalho.
É a mais perfeita inclusão digital.
O governo fica fazendo planos, projetos, diz que vai comprar milhares de computadores, gasta dinheiro do contribuinte e energia para promover programas de inclusão social que não saem do papel ou dão resultados pífios.
Os donos de lan house, estes sim, resolvem. Eliane, a da matéria do JG, cobrava dois reais a hora em dezembro de 2007. Hoje, a hora está em torno de R$ 2,50 num bairro como o Taboão.
Só falta agora o governo resolver botar uma rigorosa fiscalização nessas casas!

Só entregando
Antonio é dono de uma loja de bicicletas no Rio, legal. Dia desses, comentou com um fiscal que havia muito comércio informal de bikes. O fiscal concordou e explicou que, como sua repartição tem poucos funcionários, não há como fazer “blitz volante” para ir atrás dos ilegais.
E se alguém denunciar? - perguntou Antonio. Isso pode, disse o fiscal, dando duas possibilidades. Uma denúncia formal, na qual o denunciante se identifica no processo, seu nome podendo ser conhecido pelo denunciado. Ou uma denúncia anônima, por telefone. Mas, neste caso, explicou o solícito funcionário, serão pelo menos dois anos até o processo chegar às mãos de um fiscal.

Vale o errado
O senhor “Josué” deixou como herança às suas duas filhas uma gráfica de porte médio, em Belém do Pará, com dez empregados, ligados ao sindicato dos gráficos, sob gestão do PT. Com advento da informática, as gráficas começaram a perder mercado. Mesmo assim, o sindicato não abriu mão dos dissídios coletivos, obrigando aumentos salariais acima da inflação.
A empresa faliu, mas a história não acabou. O mais difícil estava por vir, o processo de encerramento da firma na Junta Comercial. O caso parou por causa de uma divergência quanto ao CEP da empresa. Por alguma razão, o endereço registrado na junta trazia um CEP diferente, errado. Os “requerentes” tentaram corrigir o erro. Não funcionou, o CEP tinha que bater. Aí fizeram outro requerimento, com o CEP errado. Funcionou, a Junta deferiu o fechamento.
Levou oito anos! Dois anos depois, as herdeiras ficaram finalmente livres de, anualmente, declarar a inatividade da empresa à Receita Federal.

Colaboração
É isso aí, cara leitora, caro leitor, tendo histórias assim, é só mandar através do site (www.sardenberg.com.br) ou pelo email carlos.sardenberg@tvglobo.com.br.

Publicado em O Estado de S.Paulo, 21 de dezembro de 2009

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