(Leia a coluna desta terça-feira)
Última fronteira
O episódio do Morro da Providência choca e desconcerta. Ele é a última fronteira de uma seqüência de fatos que vêm deteriorando a segurança pública no Brasil, em geral, e no Rio, em particular. A presença das Forças Armadas nos morros sempre provocou debates. Todos sabiam dos riscos, mas pouca gente imaginava um episódio de conluio tão rápido entre soldados do Exército e o tráfico de drogas.
O ocorrido tem todos os elementos de uma desordem institucional. O primeiro — e mais evidente — é o motivo da ida dos soldados para o Morro da Providência. O país não podia ter tolerado que a Força fosse usada para proteger um programa tão grosseiramente populista e eleitoreiro de um candidato da base do governo às próximas eleições municipais.
O primeiro erro é do governo federal, ao usar politicamente as Forças Armadas. O segundo é do próprio Exército, em aceitar passivamente o inaceitável. O ministro da Defesa deve um segundo pedido de desculpas: desta vez, ao país, por malbaratar os recursos institucionais que devem ser usados como último refúgio.
Há um debate sobre se o Exército pode ou não subir os morros cariocas. O argumento dos que são contra é o de que as Forças Armadas não são forças de policiamento urbano, não são preparadas para esta específica atividade, e, sim, para a guerra. Os que são a favor argumentam que é a elas que o país tem que recorrer quando o poder constituído perde o controle sobre uma parte do território, ameaçando a soberania nacional. Os dois lados têm bons pontos, mas é evidente que o que acontece no Rio vai além de um caso de policiamento urbano; é perda de controle de território para autoridades ilegítimas e tirânicas.
Seja como força policial, seja como defensores da soberania territorial, a atuação das Forças Armadas numa situação como a do Rio vai ser sempre arriscada. O economista Sérgio Besserman me explicou, recentemente, uma diferença importante: “Na Colômbia, os terroristas controlam um grande território com pouca população; no Rio, o tráfico de drogas controla pequenos territórios muito populosos.” Guardadas essas diferenças, há semelhanças nos dois casos. Como atuar numa área em que há tantos riscos de atingir a população?
O Exército vinha se preparando para ser força de atuação nas cidades em momentos específicos. Criou uma brigada especializada, com treinamento dedicado à delicada tarefa de enfrentar inimigos dentro de um espaço urbano, ou ser utilizada com força dissuasória. O Exército já atuou em inúmeras cidades, em momentos de greve da polícia, ou grave desordem pública. Não é a primeira vez, e eles tiveram tempo de se preparar para isso, pois os líderes militares sabem que eles são o refúgio derradeiro a que as autoridades democráticas devem e podem recorrer em diversos tipos de situação de descontrole e perigo. Hoje já não faz sentido o temor de que, uma vez fora dos quartéis, as forças armadas iriam querer o poder político. Portanto, não podem ficar intocadas nos quartéis. Em momentos específicos e na forma da lei, podem ser convocadas.
A ida ao Haiti é parte dessa preparação, segundo já ouvi de oficiais superiores. Lá, no contato direto com a população em situação de conflito urbano, com financiamento da ONU, os militares brasileiros enfrentariam a condição extrema e real para essa preparação necessária. Dois repórteres do “Extra”, Gabriela Moreira e Luis Alvarenga, acabam de passar quatro dias no Haiti. De lá trouxeram relatos que revelam um contraste: “Percebemos que há uma diferença crucial entre as ações policiais que acompanhamos no Rio e as do Brasil no Haiti. Em vez de correrem dos militares, as crianças do local corriam em direção aos militares.” O contraste foi tal que o jornal iniciou a série de reportagens sobre o Haiti com a seguinte manchete: Exército odiado na Providência; Exército amado no Haiti. Lá, as crianças lançando para os militares brasileiros sorrisos confiantes; aqui, a população de uma favela protestando agressiva na frente do prédio do Comando Militar. É o mesmo Exército! O que foi que aconteceu?
O que choca aqui é a rapidez com que se formou a aliança entre o crime e soldados do Exército. O que dói é a morte de três jovens, da mesma idade, da mesma cor, da maioria absoluta dos jovens vítimas de homicídio no Rio. O “presentinho” dado pelos 11 militares aos traficantes terminou na tragédia previsível: eles foram torturados, mutilados e mortos. Ao fim, jogados no lixo, no eloqüente sinal final de quanto vale a vida de um jovem pobre no Rio.
Em inúmeras pesquisas feitas nos últimos anos, as Forças Armadas constam como a instituição na qual os brasileiros mais confiam, acima da imprensa, da Igreja; muito acima do governo e do Congresso. Elas se orgulham disso, e os generais costumam mostrar a quem os visita os dados da confiança da população.
E agora? Além de punir os militares, além de tirar o Exército dessa operação específica que era uma anomalia, o que o país vai fazer? É isso que desconcerta. As Forças Armadas, de fato, não são polícia, mas têm que continuar sendo o último recurso quando o país se sente em perigo. Seu uso não pode ser banalizado, jamais politizado, mas não pode também ser impedido. As Forças Armadas não podem ser uma instituição mítica, cara e neutralizada. A rapidez com que alguns dos seus quadros foram corrompidos e entraram em conluio com o crime foi desconcertante. O episódio é gravíssimo e, sobre ele, devem se debruçar os líderes militares para descobrir a origem dos erros que jamais podem ser de novo cometidos.
O episódio do Morro da Providência choca e desconcerta. Ele é a última fronteira de uma seqüência de fatos que vêm deteriorando a segurança pública no Brasil, em geral, e no Rio, em particular. A presença das Forças Armadas nos morros sempre provocou debates. Todos sabiam dos riscos, mas pouca gente imaginava um episódio de conluio tão rápido entre soldados do Exército e o tráfico de drogas.
O ocorrido tem todos os elementos de uma desordem institucional. O primeiro — e mais evidente — é o motivo da ida dos soldados para o Morro da Providência. O país não podia ter tolerado que a Força fosse usada para proteger um programa tão grosseiramente populista e eleitoreiro de um candidato da base do governo às próximas eleições municipais.
O primeiro erro é do governo federal, ao usar politicamente as Forças Armadas. O segundo é do próprio Exército, em aceitar passivamente o inaceitável. O ministro da Defesa deve um segundo pedido de desculpas: desta vez, ao país, por malbaratar os recursos institucionais que devem ser usados como último refúgio.
Há um debate sobre se o Exército pode ou não subir os morros cariocas. O argumento dos que são contra é o de que as Forças Armadas não são forças de policiamento urbano, não são preparadas para esta específica atividade, e, sim, para a guerra. Os que são a favor argumentam que é a elas que o país tem que recorrer quando o poder constituído perde o controle sobre uma parte do território, ameaçando a soberania nacional. Os dois lados têm bons pontos, mas é evidente que o que acontece no Rio vai além de um caso de policiamento urbano; é perda de controle de território para autoridades ilegítimas e tirânicas.
Seja como força policial, seja como defensores da soberania territorial, a atuação das Forças Armadas numa situação como a do Rio vai ser sempre arriscada. O economista Sérgio Besserman me explicou, recentemente, uma diferença importante: “Na Colômbia, os terroristas controlam um grande território com pouca população; no Rio, o tráfico de drogas controla pequenos territórios muito populosos.” Guardadas essas diferenças, há semelhanças nos dois casos. Como atuar numa área em que há tantos riscos de atingir a população?
O Exército vinha se preparando para ser força de atuação nas cidades em momentos específicos. Criou uma brigada especializada, com treinamento dedicado à delicada tarefa de enfrentar inimigos dentro de um espaço urbano, ou ser utilizada com força dissuasória. O Exército já atuou em inúmeras cidades, em momentos de greve da polícia, ou grave desordem pública. Não é a primeira vez, e eles tiveram tempo de se preparar para isso, pois os líderes militares sabem que eles são o refúgio derradeiro a que as autoridades democráticas devem e podem recorrer em diversos tipos de situação de descontrole e perigo. Hoje já não faz sentido o temor de que, uma vez fora dos quartéis, as forças armadas iriam querer o poder político. Portanto, não podem ficar intocadas nos quartéis. Em momentos específicos e na forma da lei, podem ser convocadas.
A ida ao Haiti é parte dessa preparação, segundo já ouvi de oficiais superiores. Lá, no contato direto com a população em situação de conflito urbano, com financiamento da ONU, os militares brasileiros enfrentariam a condição extrema e real para essa preparação necessária. Dois repórteres do “Extra”, Gabriela Moreira e Luis Alvarenga, acabam de passar quatro dias no Haiti. De lá trouxeram relatos que revelam um contraste: “Percebemos que há uma diferença crucial entre as ações policiais que acompanhamos no Rio e as do Brasil no Haiti. Em vez de correrem dos militares, as crianças do local corriam em direção aos militares.” O contraste foi tal que o jornal iniciou a série de reportagens sobre o Haiti com a seguinte manchete: Exército odiado na Providência; Exército amado no Haiti. Lá, as crianças lançando para os militares brasileiros sorrisos confiantes; aqui, a população de uma favela protestando agressiva na frente do prédio do Comando Militar. É o mesmo Exército! O que foi que aconteceu?
O que choca aqui é a rapidez com que se formou a aliança entre o crime e soldados do Exército. O que dói é a morte de três jovens, da mesma idade, da mesma cor, da maioria absoluta dos jovens vítimas de homicídio no Rio. O “presentinho” dado pelos 11 militares aos traficantes terminou na tragédia previsível: eles foram torturados, mutilados e mortos. Ao fim, jogados no lixo, no eloqüente sinal final de quanto vale a vida de um jovem pobre no Rio.
Em inúmeras pesquisas feitas nos últimos anos, as Forças Armadas constam como a instituição na qual os brasileiros mais confiam, acima da imprensa, da Igreja; muito acima do governo e do Congresso. Elas se orgulham disso, e os generais costumam mostrar a quem os visita os dados da confiança da população.
E agora? Além de punir os militares, além de tirar o Exército dessa operação específica que era uma anomalia, o que o país vai fazer? É isso que desconcerta. As Forças Armadas, de fato, não são polícia, mas têm que continuar sendo o último recurso quando o país se sente em perigo. Seu uso não pode ser banalizado, jamais politizado, mas não pode também ser impedido. As Forças Armadas não podem ser uma instituição mítica, cara e neutralizada. A rapidez com que alguns dos seus quadros foram corrompidos e entraram em conluio com o crime foi desconcertante. O episódio é gravíssimo e, sobre ele, devem se debruçar os líderes militares para descobrir a origem dos erros que jamais podem ser de novo cometidos.
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