Carlos Alberto Sardenberg
Casas na crise
Na sequência de dados sobre a economia americana conhecidos na semana passada, um chamou a atenção: as vendas de imóveis residenciais novos, em agosto, caíram para 460 mil. Trata-se de um desastre: queda de 11,5% em relação ao mês anterior e de nada menos que 34,5% em relação a agosto do ano passado. Aí está o foco original da crise.
Mas olhando o número de outro modo, pode-se dizer: caramba, 460 mil pessoas e/ou famílias compraram casa nova no pior momento da crise? Mais ainda: essa crise vem desde agosto do ano passado, mas ao longo de 2008 os americanos compraram algo como 515 mil residências ao mês. Nesse ritmo, e supondo uma desaceleração na parte final do ano, terão sido vendidas mais de 6 milhões de casas novas, na maior crise do setor.
Está aí, portanto, um número com dupla interpretação. De um lado, a óbvia desaceleração. De outro, a resistência da economia.
Mais importante, ainda, é observar como o sistema financeiro irrigou esse mercado. Antes dos desastres, os americanos passavam fácil das 600 mil casas novas ao mês. Os economistas discordam sobre o momento em que ficou clara a formação de uma bolha imobiliária, mas digamos que, no período recente, foram uns dez anos de juros baixos, crédito abundante, preços dos imóveis em alta. Nessa fase, os americanos compraram, financiando, 72 milhões de imóveis residenciais, sempre novos. Considerando uma população na casa dos 300 milhões, não está mal, não é mesmo?
Outros dados mostraram que pouco mais de um milhão de famílias perderam suas casas neste ano, por não conseguirem pagar as prestações. Trata-se de um expressivo problema social, mas um número controlável diante da totalidade de imóveis financiados.
Qual o interesse destas contas? Mostrar que é uma tremenda bobagem dizer que o sistema financeiro moderno tornou-se uma máquina descolada da economia real, gerando crédito sobre crédito, papel sobre papel, tudo dinheiro só existente nas contabilidades criativas.
Para que servem os bancos? Para captar poupança onde sobra e distribuí-la onde há demanda por investimentos e consumo. O moderno sistema financeiro, baseado na tecnologia de informação, desenvolveu essa capacidade de maneira extraordinária. Com isso, forneceu capital barato para o mundo todo, capital esse que resultou em casas, fábricas, obras de infra-estrutura e, claro, consumo.
Isso tudo resultou também em um excesso de crédito mal concedido, em operações complexas cujo objetivo era dividir e minimizar os riscos e que acabaram por espalhar o risco por todo o sistema. Resultou também em ganhos extraordinários para o próprio sistema financeiro, que nos últimos anos abocanhava a maior parte dos lucros gerados pela economia real. Resultou também em ganhos extraordinários para executivos, que, em muitos casos, se remuneravam pelo volume de negócios e não pelos seus resultados positivos. Teve uma farra aí, alem da farra da economia real.
Olhando de hoje para trás, fica evidente que faltou regulamentação e fiscalização. Mas, de novo, retomando tema deste espaço, é difícil acabar com a festa quando parece que tudo vai bem. Economia em crescimento, setor imobiliário pujante, sem inflação – e aí vem o banco central e aumenta os juros e limita os financiamentos, com o propósito de impedir a formação de uma bolha que ninguém ainda vê?
Desde que existe o capitalismo, periodicamente se produzem bolhas. Nunca são iguais, mas também não são muito diferentes, na sua estrutura básica. Que seja difícil prevê-las e abortá-las, deve ser por alguma razão muito forte.
De modo que o mais importante é como lidar com as bolhas quando estouram. Uma boa administração, a tempo, pode reduzir os efeitos da crise e abreviar a retomada que sempre ocorre. É preciso sabedoria, pois não raro o combate à crise acaba levando a um tipo de controle da atividade econômica que dificulta a retomada.
Esse é o ponto em que estamos hoje. Por mais insuficiente que seja o plano de resgate do sistema financeiro americano, esse de US$ 700 bilhões que estava quase fechado ontem, ele tornou-se indispensável, pela própria expectativa criada em torno de sua aprovação.
A rejeição agora criaria uma situação muito pior, pois passaria a indicação de que as autoridades não são capazes de agir contra a crise. Nessa caso, a crise cai em um cada-um-por-si, ambiente no qual o crédito simplesmente desaparece. Não apenas o crédito entre bancos, que já seria grave, mas quem tiver dinheiro em caixa não vai querer se arriscar em nenhuma operação de empréstimo ou de investimento ou consumo, pois o prognóstico passa a ser de uma recessão dura, global, na sequência de um colapso financeiro.
Esse entendimento, o de que não fazer o plano é, de longe, a pior hipótese - ainda é o melhor estímulo para que o pacote seja afinal aprovado no Congresso americano.
Mas o tempo é importante. O plano precisa ser grande e sair a tempo.
Até a sexta-feira, deputados republicanos e John McCain pareciam estar usando essa premência para enfiar algumas coisas no pacote.
No lado dos democratas, havia muita preocupação, digamos, moral. Aquelas idéias que de que é preciso punir o sistema e seus executivos. Começa que muitos já foram punidos, com a perda de seus cargos e com a desvalorização de suas ações. Aliás, muitos acionistas, donos, viram seus ativos virarem pó. É a pior punição.
Fraudes serão apanhadas no curso das investigações posteriores.
A pior saída é querer criar um sistema que, no futuro, engesse a capacidade criadora que é essencial ao capitalismo. No momento, trata-se simplesmente de salvar o sistema financeiro, aquele que capta e distribui poupança.
Será publicado em O Estado de S.Paulo, 30 de setembro de 2008.
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