O olhar do tempo
Míriam Leitão
A tragédia de Santa Catarina alerta para um risco que o Brasil tem negligenciado: as mudanças climáticas vão aumentar a freqüência e a gravidade de eventos extremos, como secas, enchentes e ciclones. Os dados de população divulgados esta semana pelo IBGE repetem o aviso de que o Brasil está no melhor momento demográfico, mas vai envelhecer. Precisamos nos preparar para o Século XXI.
Neste século, a humanidade terá que combater intensamente os efeitos da mudança climática através da adaptação e da mitigação. Adaptação não é capitulação. Os cientistas estão avisando que uma parte do estrago está feito e é irreversível. Está no estoque de gases de efeito estufa já emitidos pela humanidade. Contra ele nada podemos. Esse estoque vai elevar a temperatura da terra e o nível do mar, vai intensificar furacões, ciclones, enchentes, secas. A população brasileira se concentra no litoral, as cidades ocupam de forma irregular as encostas, desmatam e concretam o espaço urbano. As obras de escoamento são adiadas. O planejamento urbano é sistematicamente desligado de qualquer preocupação ambiental. Uma chuva mais forte mata e desabriga. Como será no futuro, quando as enchentes ficarem piores e mais freqüentes?
O semi-árido nordestino, onde mora a população mais frágil, corre o risco da desertificação. A Amazônia é determinante de todo o clima brasileiro, mas, aqui, comemoramos quando num ano são destruídos “apenas” 11.968 km² de floresta. O Sul está sendo vítima de eventos inesperados e extremos. O furacão Catarina, secas fortes e chuvas intensas, mesmo neste ano que não tem El Niño, estão impressionando os cientistas. “É a fotografia de que o aquecimento global pode já estar atuando com mais intensidade no Sul do país”, disse o climatologista Carlos Nobre ao Bom Dia Brasil, da TV Globo.
Na preparação para o inevitável, temos falhado. Na luta para evitar o que se pode evitar, estamos falhando. O Brasil discutiu, nos últimos meses, o Plano Nacional contra as Mudanças Climáticas. Um plano feito para iludir. Analisado pelos especialistas, ele foi considerado medíocre. O governo ouve mais os diplomatas que acham que isso é uma briguinha Norte-Sul e não ouve os ambientalistas e climatologistas que alertam para os riscos extremos que o planeta corre, e que ainda podemos evitar.
A posição oficial do Itamaraty caducou. Felizmente, há diplomatas que já viram isso, mas a velha idéia permanece como a oficial. A de que não podemos aceitar metas internacionais de redução das emissões brasileiras porque, na formação do estoque de gases que estão na atmosfera hoje, não tivemos uma grande participação. Isso é miopia da urgência. A humanidade não pode reduzir o estoque, mas pode reduzir o fluxo. E no fluxo dos gases de efeito estufa nós somos, infelizmente, grandes.
A maior parte das nossas emissões vem da destruição da Amazônia, da qual somos as maiores vítimas. Por que não assumir um compromisso internacionalmente comparável, e cobrável, se somos os primeiros a ganhar com a proteção da floresta que nos protege a todos?
A demografia vem nos alertando que seremos cada vez mais velhos e que temos, hoje, uma vantagem que vai desaparecer no futuro. Em 2000, para cada pessoa com 65 anos ou mais, 12 estavam na faixa de 15 a 64 anos, chamada de potencialmente ativa. Em 2050, para cada brasileiro com mais de 65 anos, não haverá nem três na faixa potencialmente ativa. Certamente, eu não estarei mais aqui, mas minha neta terá 45 anos: 2050 parece distante, mas é logo ali na esquina do tempo. Somos jovens e a Previdência quebrou. O que foi aprovado de controle desses gastos tem sido contestado.
O IBGE avisa que temos uma “janela demográfica”, um tempo em que está aumentando o número de pessoas “potencialmente ativas”. A população com idade de entrar no mercado de trabalho (de 15 a 24 anos) é de 34 milhões de pessoas. Este número depois vai cair. Se o país educar os jovens e mantiver o crescimento, este será o momento de dar um salto. Mas hoje ainda existem no Brasil 2,4 milhões de crianças de 7 a 14 anos que não sabem ler e escrever.
No combate às velhas mazelas, o Brasil tem tido uma tolerância intolerável. Na sexta-feira, 21 de novembro, os jornais trouxeram a notícia do flagrante dado na Usina Vitória, em Pernambuco, propriedade do prefeito eleito de Palmares, Beto da Usina. A auditora do trabalho Jaqueline Carrijo disse que os trabalhadores não tinham água potável, alimentação adequada, equipamento de segurança e banheiros. Eles acordavam entre 2h e 3h da manhã, preparavam o próprio alimento, muitas vezes só com farinha de mandioca. O jornal Estado de S. Paulo trouxe o seguinte relato: “O advogado da usina, José Hamilton Lins, admitiu as condições precárias de trabalho, que considerou parte de uma cultura colonial que precisa de tempo para se adaptar às novas regras trabalhistas”. O período colonial acabou há 186 anos; a escravidão, há 120 anos; as “novas” leis trabalhistas são dos anos 30 do século passado. Quanto tempo mais o advogado José Hamilton Lins acha que devemos esperar? O Brasil pretende mesmo vender seu etanol ao mundo, como um produto para um planeta sustentável, tendo usinas com esta?
Da tragédia de Santa Catarina, dos alertas da natureza, dos riscos e das chances da demografia, das seqüelas dos velhos crimes, o Século XXI nos contempla como um enigma: que escolhas fará o Brasil?
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