Marcio Pochmann *
Neste mês de outubro, mais precisamente hoje, dia 24, registra-se 80 anos de ocorrência da mais grave crise do capitalismo de todo o século 20. O capitalismo que emergiu após a grande crise de 1929 jamais foi o mesmo. Por um lado, o radical abandono dos pressupostos liberais de condução das políticas econômicas e sociais. Diante da clara incapacidade da economia de mercado andar por si mesma, sem o aporte, a vigilância e a politização das forças extramercados, tornou-se evidente a ascensão da mão visível do Estado. Para as nações mais industrializadas, a saída da crise foi longa e diferenciada. Mas na maioria das vezes, somente a militarização da economia se mostrou suficientemente eficaz para superar o nível de produção verificado em 1929 (Alemanha, Itália, Japão, EUA, por exemplo). Também as reformas regulatórias sobre as estruturas de mercado (bancária-financeira e oligopólios em geral) contribuíram para redistribuir o excedente econômico gerado, bem como permitir que parcela significativa da população passasse a viver sem depender de sua inserção no mercado de trabalho (inatividade até os 16 anos de idade e garantia de renda a desempregados, idosos, doentes e portadores de deficiências físicas e mentais por meio de aposentaria e pensões). Simultaneamente ao fracasso das políticas liberais no enfrentamento da crise de 1929, assistiu-se ao sucesso da economia russa, por esta ter seguido crescendo continuamente. Enquanto o produto industrial dos Estados Unidos acumulava 38% de perda no ano de 1938 em relação a 1929, a produção industrial russa era 4,8 vezes maior no mesmo período de tempo.
Por outro lado, a redefinição de nova centralidade dá dinâmica ao mundo. Os sinais crescentes da decadência do Reino Unido em manter o velho padrão de hegemonia mundial mantiveram por mais tempo aberta a temporada de guerras pelo restabelecimento de uma nova liderança no centro capitalista: Alemanha ou EUA. Somente com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945) os EUA assumem, de fato, a posição de centro dinâmico mundial, tendo no padrão monetário (ouro-dólar) o reflexo direto da inquestionável dominação econômica, militar, tecnológica e ideológica. Salvo pelo peso crescente do polo soviético, a hegemonia estadunidense não foi unívoca. Frente ao declínio relativo da Europa Ocidental, a antiga periferia do mundo organizado pelo Reino Unido sofreu forte transformação. Até então, o contingente de 2/3 da população mundial (1,4 bilhão de pessoas) associado ao desempenho de economias primário-exportadoras tinha nos preços das matérias-primas estabelecidas na bolsa de valores dos países ricos uma das poucas possibilidades internas de ascensão socioeconômica. A bipolaridade mundial que deu lugar no contexto da guerra-fria (1947-1991) descortinou novas oportunidades aos países submetidos à condição do subdesenvolvimento. Alguns poucos países, como a Argentina, Brasil, México, África do Sul, Coreia do Sul, China e Índia, avançaram consideravelmente nos seus processos nacionais de industrialização, com exitosos resultados em termos econômicos, nem sempre acompanhados do desenvolvimento social.
Tudo isso, contudo, sofreu forte indefinição desde a queda do muro de Berlim, quando os EUA ascenderam à condição de unipolaridade mundial. O avanço da globalização financeira fortalecida pela hegemonia do pensamento econômico único do neoliberalismo impôs retrocessos em vários países da periferia capitalista.
Países como o Brasil, que alcançaram o posto de oitava economia do mundo na década de 1980, retroagiram no tempo para a 14ª colocação. Ao mesmo tempo, as políticas governamentais de revisão no papel do Estado facilitaram a convergência de monopolização dos mercados por meio das grandes corporações transnacionais. Atualmente, somente 500 grandes empresas respondem por quase a metade do Produto Interno do mundo, o que as tornaram muito grandes para quebrarem, o que seria natural para o funcionamento livre das forças de mercado.
Como a crise internacional de 2008 demonstrou, o livre mercado não existe mais. A ultramonopolização privada atual está por exigir o aparecimento do superestado, capaz de fazer frente aos frequentes riscos de quebra da grande empresa e que podem levar à bancarrota de um país, quando não a uma crise internacional. Ao mesmo tempo, cabe ao superestado o desenho de novas políticas que possibilitem a reinvenção do mercado, especialmente para as micro e pequenas empresas, que se encontram, na maioria das vezes, completamente marginalizadas do acesso aos mercados. Não obstante os avanços governamentais recentes no fortalecimento dos pequenos negócios, que respondem por mais de 90% dos estabelecimentos econômicos brasileiros em termos de compras governamentais (Lei Geral da Micro e Pequena Empresa), organização empresarial (Lei do Micro Empreendedor Individual), crédito, entre outros, cabem ainda ações mais amplas. Não há razão técnica que justifique um país de dimensão continental e com quase 200 milhões de habitantes ter menos de 180 bancos. Países como EUA e Alemanha possuem, respectivamente, mais de 8 mil e 3 mil bancos. Seria perfeitamente factível ao Brasil possuir um banco para micro e pequeno negócio, conforme a experiência exitosa japonesa, bem como a presença de uma empresa pública de desenvolvimento tecnológico e assistência técnica específica ao andar de baixo da economia nacional.
Tudo isso é possível e se torna mais urgente frente à reestruturação que passa o mundo em virtude da atual crise internacional. O aumento da capacidade ociosa nas grandes corporações mundiais e o avanço para um mundo multipolar -- com os sinais de decadência relativa dos EUA - exigem não apenas um novo planejamento estratégico para o longo prazo, mas ações estruturantes a partir do êxito das políticas anticíclicas adotadas desde outubro de 2008 no Brasil.
Marcio Pochmann é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O artigo foi publicado no jornal Valor Econômico.
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