Lucia Hippolito
O Rio de Janeiro é, mesmo, uma cidade muito peculiar.
Aqui não existe, propriamente, o que conhecemos como “periferia”.
Acontecimentos mais, ou menos, intensos que se passam nas periferias das grandes cidades têm uma repercussão mais restrita, no máximo uma notinha na página 15, como costumavam dizer os velhos jornalistas.
No Rio não. Como os morros e as comunidades proliferam por toda a cidade, há um convívio muito próximo entre todas as classes sociais dentro do mesmo espaço urbano.
Assim, a Rocinha convive muito de perto com o IPTU mais caro da cidade, que é o de São Conrado. Convive também com mansões de classe alta na Gávea.
O mesmo acontece com o morro dos Macacos, em Vila Isabel, com o morro Dona Marta, em Botafogo (bem atrás da sede da Prefeitura), com os morros do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho em Ipanema. Para ficar apenas nesses exemplos.
Esta topografia muito peculiar confere alto grau de democratização ao Rio. Pobres e ricos desfrutam da mesma vista do mar, do Pão de Açúcar e do Corcovado.
Muitas comunidades do Rio são dominadas por traficantes de drogas que, vez por outra, entram em guerra pelo controle de pontos de venda.
Há também constantes confrontos com a polícia.
Tudo isto acontece também em outras cidades brasileiras. Ou mesmo em outros países.
Mas no Rio de Janeiro a repercussão é infinitamente maior. Um conflito numa favela de São Paulo, com todo o respeito, não repercute na imprensa brasileira e mundial, porque não afeta os Jardins nem a avenida Paulista.
Mas um confronto numa favela de Copacabana, por exemplo, é manchete em todo o mundo, porque Copacabana é conhecida no mundo inteiro.
Nada do que foi dito acima justifica a situação a que chegou o Rio de Janeiro em matéria de poder dos traficantes e do crime organizado.
Mas explica a repercussão mundial. É triste e muito ruim para a imagem do Rio, com ou sem Copa do Mundo ou Olimpíadas.
O fato é que há mais de 20 anos o país inteiro perdeu tempo numa desconversa a respeito do enfrentamento do crime organizado.
Enquanto a direita considerava que “bandido bom é bandido morto”, a esquerda se perdia em devaneios tentando atribuir raízes sociais à criminalidade – o que é uma tremenda injusta com os milhões de pobres deste país que não roubam nem matam.
Só muito recentemente é que se chegou à convergência. É preciso, sim, enfrentar com coragem o poder do tráfico e do crime organizado – claro, respeitando os direitos humanos e sem brutalidade policial – e, ao mesmo tempo, realizar ações sociais para afastar os jovens da tentação do dinheiro fácil do crime e do tráfico.
O que precisa ser recuperado no Rio de Janeiro é o poder do Estado: territorialidade, monopólio do uso legal da força e justiça. Em suma, os elementos constitutivos do que se costuma chamar de Estado moderno.
No Rio de Janeiro – e em outras cidades brasileiras também, vamos ser justos – há territórios onde o poder público não entra.
E não se trata apenas da polícia, mas da ambulância, do carro de bombeiros, do carteiro, do agente de saúde, do recenseador do IBGE. A perda da territorialidade pelo Estado é terrível.
Além disso, o poder público precisa recuperar o monopólio do uso legal da força. Não é mais possível que comunidades inteiras sejam reféns dos traficantes ou das milícias.
Não se pode admitir que um helicóptero da polícia seja abatido por artilharia antiaérea.
Como essas armas entram nos morros? Por que não se fiscalizam as fronteiras terrestres e marítimas? O que fazem o Exército, a Marinha e a Polícia Federal para coibir a entrada de drogas e armas nos morros do Rio?
E finalmente, a questão da justiça. Como sabemos, a Justiça brasileira é lenta, não protege os menos favorecidos.
A Lei de Execuções Penais é obsoleta e romântica. Recentemente, um preso de altíssima periculosidade teve direito a progressão de pena para regime semiaberto. O que fez ele? Fugiu e não apareceu mais.
Justificativa do juiz que concedeu a progressão de pena: as informações do sistema penitenciário eram de que o comportamento do preso tinha sido “exemplar”. Em seguida ficamos sabendo que o tal “cidadão” era suspeito de quatro mortes dentro do presídio!
Em suma, há muito para ser discutido, além da corrupção na polícia, além dos baixos salários dos policiais.
São temas importantes, mas não esgotam o assunto.
Não dá mais para o governo federal alegar que, constitucionalmente, o problema é do governo do estado.
Não dá mais para os prefeitos assistirem, impotentes, às suas cidades se transformarem em praças de guerra.
Está mais do que na hora de se pensar em entregar o controle da polícia nas capitais aos seus prefeitos – como acontece em todas as grandes cidades do mundo.
Assim como a cidade de São Paulo não pode ser tratada como Votuporanga – como todo o respeito àquela simpática cidade –, a cidade do Rio de Janeiro não pode ser tratada como Varre-Sai, o menor município fluminense – com todo o respeito etc., etc.
Está aí um bom tema para a campanha eleitoral de 2010.
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