Panorama Econômico
Milicianos é uma palavra suave para dizer o que são: bandidos associados a policiais-bandidos. Tiranizam favelas — como os traficantes —, mas alguns são pagos com dinheiro público; foram treinados e armados pela sociedade. A única resposta do governo do Rio à tortura dos repórteres de “O Dia” tem que ser a implacável punição dos bandidos e o combate a essa anomalia nascida no coração do estado.
O crime é um atentado à liberdade de imprensa, claro, mas é também — e sobretudo — um atentado aos direitos humanos. A tortura aos jornalistas é inaceitável não por eles serem jornalistas, mas porque a tortura é inaceitável. Os repórteres de “O Dia”, com seu sofrimento, revelaram o sofrimento de toda a população da Favela do Batan, e, por conseguinte, das mais de 70 favelas submetidas ao mesmo terror, à mesma anomalia, da ditadura imposta por policiais fora do seu expediente associados a ex-policiais.
Não há qualquer atenuante ao que os policiais-bandidos fizeram; há apenas agravantes. A resposta — ou falta de resposta — da Polícia do Rio impressiona: eles tiveram 15 dias para investigar e ainda não têm ninguém a apresentar à sociedade. O secretário José Mariano Beltrame, depois de duas semanas para investigação, admite que, entre os torturadores, havia policiais. Falta prender todos eles.
O Rio tem convivido com o absolutamente intolerável, que é a perda de poder das autoridades constituídas sobre parte do território. Não vamos nos enganar pelo tom das declarações das autoridades de segurança; ou pela banda de música do PAC. Tudo só será diferente quando for erradicado o poder paralelo dos traficantes e dos policiais e ex-policiais bandidos de áreas submetidas a um poder ditatorial que decide vida e morte, que faz as leis, que expropria parte da renda dos moradores, que tortura e tiraniza. Na luta pela democracia, aprendemos que não existe ditadura boa; bom é o império da lei.
O Rio fechou os olhos para essa anomalia. Alguns até flertaram com a idéia de que, pelo fato de terem expulsado os traficantes das favelas que ocupavam, por proibirem o tráfico, eles seriam bandidos toleráveis, melhores, quase um mal necessário. Pelo menos, a favela estaria livre dos traficantes. Mas, na verdade, esse fenômeno é um retrato até mais agudo da falência do Estado. A mesma polícia que não consegue expulsar os bandidos quando representa a sociedade é eficiente para expulsá-los quando se torna bandida. É a vitória da bandidagem, dos fora-da-lei. É a derrota mais clamorosa da sociedade, das leis, do poder do Estado.
Há uma questão que foi levantada em algumas declarações: os repórteres deveriam ter ido lá sabendo o risco que corriam? No mundo inteiro, repórteres vão a lugares perigosos; é conhecida a técnica de viver como um local para retratar exatamente os problemas daquela comunidade. O que eles fizeram é feito no mundo inteiro. Tim Lopes foi ver de perto, para informar ao país, o absurdo dentro do absurdo, que era a exploração sexual de crianças numa área controlada pelo tráfico. Daniel Pearl estava tentando revelar os absurdos da guerra do Afeganistão quando foi morto no Paquistão. Esses eventos nos mostram, todos eles, que o jornalismo do Rio tem que, enfim, entender que cobre uma guerra; com todos seus riscos. Isso pode nos levar a aprofundar o treinamento de repórteres para atuar em áreas de conflito, mas não se pode defender que fiquemos longe dos fatos. Se o jornalismo capitular, eles terão tido uma vitória decisiva. O desafio é manter a segurança dos jornalistas e continuar trazendo histórias do mundo de lá.
Quando O GLOBO publicou uma série memorável de reportagens sobre “os brasileiros que ainda vivem na ditadura”, mostrou a tantos políticos e intelectuais que a democracia conquistada nas lutas dos anos 70 foi restrita. Ela vale para nós: para os que têm renda para morar nas áreas nobres da cidade. Não vale para quem está logo ali adiante. O que a tortura dos colegas do jornal “O Dia” mostra é que não se pode aceitar nenhuma autoridade que não seja a do estado de direito.
A Colômbia acreditou, num certo momento, que esse fosse o caminho, o de fingir não ver a anomalia dos paramilitares que combatiam a guerrilha, um mal menor em comparação aos terroristas. Os paramilitares se tornaram um problema tão grande para o estado de direito colombiano quanto a guerrilha. Eles também seqüestram e tiram renda do tráfico. Não há dúvida de que se, algum dia, os policiais-bandidos controlarem todas as favelas do Rio serão eles os reis das drogas, serão eles os traficantes.
Em situação extrema, a repórter torturada fez a pergunta certa aos seus algozes: “Se não são bandidos, por que estão fazendo isso?” O jornal contou que “a resposta não vinha em palavras, mas, sim, em socos e tapas”. A única resposta é: eles são bandidos. Se o poder se acovardar nessa luta, se a sociedade for ambígua em relação a eles, se a imprensa preferir nunca mais correr riscos no Rio de Janeiro, então vigorará a barbárie. Só nos restará aceitar a submissão ao reino dos bandidos que hoje tiranizam Batan e 78 favelas através da milícia, e todas as outras através do tráfico de drogas. Sem limites, sem poder que os contraste, a ditadura deles se espalhará por toda a cidade. Não existe meia tirania. Se não for contida, ela baterá em todas as portas.
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