Artigo extraído de Época desta semana. Fernando Abrucio, colunista e doutor em Ciência Política pela USP e professor da Fundação Getúlio Vargas (SP)
O Brasil é um país onde passado, presente e futuro convivem no mesmo tempo histórico. Resquícios de forte atraso permanecem no trabalho infantil ou no sistema político-administrativo, principalmente nos municípios. Enfrentamos problemas tipicamente contemporâneos, como a questão metropolitana. E o futuro bate a nossa porta, em temas como as células-tronco ou a necessidade de definir como será explorado o petróleo do pré-sal e para quem serão distribuídos seus recursos.
A leitura sobre a simultaneidade dos tempos no Brasil e alhures já apareceu em grandes pensadores. O que me levou a retomá-la foram dois eventos: uma excelente palestra do ministro Mangabeira Unger sobre a gestão pública brasileira e o recente episódio da escuta telefônica envolvendo personagens dos Três Poderes da República.
A Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República reuniu um grupo de especialistas para construir uma agenda de longo prazo para a gestão pública. O planejamento de ações futuras, independentemente de quem venha a governar o país, e a riqueza dos debates já valeriam pelo encontro. O mais interessante foi a palestra do ministro, que mostrou como a administração pública brasileira precisa enfrentar, ao mesmo tempo, questões dos séculos XIX, XX e XXI. No terreno do passado, é preciso combater os resquícios do patrimonialismo, que vai muito além do nepotismo. O que nos falta, em boa parte do aparelho de Estado, é a constituição de uma burocracia meritocrática. Esse problema é mais grave nos Estados e, principalmente, nos municípios, exatamente os níveis que executam a maior parte das políticas públicas.
Entre os instrumentos de gestão do século XX, o ministro destacou o papel das técnicas gerenciais. O Brasil teve avanços nesse terreno nos últimos anos, como demonstra o exemplo do governo eletrônico, usado em compras governamentais. Mas milhares de escolas e hospitais públicos ainda funcionam como repartições arcaicas, morosas em sua rotina e com atendimento precário para os cidadãos mais pobres.
Mangabeira ressaltou a necessidade de a administração pública buscar o paradigma do novo século, marcado pela maior importância da democratização do poder público e pelas parcerias com a sociedade. O ministro propôs que todas as dimensões sejam enfrentadas simultaneamente, pois não há como esperar que o passado seja resolvido para atuar no presente, nem pensar o futuro sem combater o legado perverso da História.
Esse raciocínio se encaixa perfeitamente no tema da semana: os grampos contra altas autoridades da República. O que está em jogo é a herança do regime militar: arapongas que ainda não aprenderam as regras do jogo democrático, atuando como se estivessem nos porões da ditadura. No fundo, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) continua muito próxima do velho Serviço Nacional de Informação (SNI). Para derrotar o passado, entretanto, não se podem ignorar os desafios do presente e do futuro. No que se refere à agenda contemporânea, é preciso conciliar a defesa do direito individual de privacidade com o reforço das instituições de investigação. A despeito de alguns escorregões, a Polícia Federal tem prestado serviços relevantes ao país. Primeiro, desbaratando máfias que atuam contra a coletividade e, sobretudo, democratizando a Justiça brasileira.
No século XXI, caberá aos órgãos de investigação e inteligência atuar, por exemplo, contra crimes cibernéticos e experimentos ilegais de engenharia genética. Para cumprir essa tarefa, terão de utilizar técnicas como a escuta telefônica. É bom ressaltar que se, diante do grave escândalo atual, acabarmos com os meios de atuação da PF e da Abin, inviabilizaremos o presente e o futuro dessas instituições. E pior: sem a garantia de que os arapongas treinados pelos militares não continuem suas estripulias fora do aparelho estatal.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário