Carlos Alberto Sardenberg
A crise que atinge o mundo todo, embora tenha origem direta no sistema financeiro, é também consequência de desequilíbrios na economia real. Logo, a saída do embrulho passa por dois movimentos: um, o de sanear o sistema financeiro outro, de mudar a estrutura da economia global, algo como refazer as relações entre os países e, dentro destes, as relações entre pessoas e classes.
Esse é o entendimento de boa parte dos economistas e dos políticos, tanto no mundo desenvolvido quanto nos emergentes.
Também há razoável concordância sobre o desequilíbrio principal: está nos Estados Unidos, justamente a maior economia do planeta, aliás, muito maior. O PIB americano estava em torno dos US$ 14 trilhões. O segundo é o do Japão, cerca de US$ 4,8 trilhões, seguindo-se China e Alemanha, na casa dos US$ 3 trilhões, cada, e Inglaterra, US$ 2,7 trilhões.
Reparem: para juntar um EUA é preciso somar tudo o que é produzido pelos japoneses, alemães, chineses e ingleses e ainda faltam uns US$ 500 bilhões, ou algo como o PIB do Mercosul sem o Brasil. (E para pagar a curiosidade, o Brasil produziu no ano passado o equivalente a US$ 1, 57 trilhão).
Que o centro do desequilíbrio esteja nos EUA, já se vê, é um enorme complicador. Mas é ainda mais complexa a situação: o desequilíbrio básico dos Estados Unidos é o que movimentou toda a economia mundial.
Explicando: o problema com os EUA é que o país, o governo e as pessoas passaram anos a fio gastando mais do que ganhavam, sem poupança e tomando dinheiro emprestado quase sem limite.
Essa tremenda demanda estimulou produção e investimentos pelo mundo afora. O negócio é, ou era, vender para os americanos. Não por acaso o mercado americano sempre foi o principal destino das exportações de um grande número de países, Brasil incluído.
Mas, no essencial, do outro lado do desequilíbrio, está a China, o reverso da medalha: em vez de consumo, poupança que chega a passar dos 40% do PIB e investimentos maciços em fábricas e infra-estrutura, tudo pagando salários baixos, com custos mínimos.
Boa parte da máquina chinesa se fez com capital estrangeiro, especialmente americano. Ainda na semana passada, por exemplo, a falida GM anunciou planos de revitalização que incluem vender nos EUA os carros (muito mais baratos) que ela mesma produz na China.
Resumindo: capitais foram para a China e se somaram à poupança local e as fábricas lá passaram a produzir para vender nos EUA, cujos consumidores se endividaram torrando dinheiro nos shoppings. E como foram financiados? Com o dinheiro que os chineses e outros ganharam vendendo para os americanos. (Hoje, a China é a principal detentora de títulos do governo americano, com US$ 767 bilhões o Japão, outro que se fez vendendo para os EUA, é o segundo, com US$ 686 bilhões o Brasil ocupa a honrosa posição de sétimo detentor dos títulos americanos, com US$ 126,6 bilhões).
Falamos mais da China porque foi a potência que emergiu nesse esquema. Mas estão nessa jogada muitos outros países, incluindo todos os asiáticos. E há economias, como a brasileira, que pegaram uma dupla carona: nós vendemos produtos acabados nos EUA, mas também exportamos para a China minério de ferro, aço e celulose, por exemplo, que entram nas mercadorias que os chineses vendem nos EUA
Ora, não é possível que a dívida americana continue aumentando, contra a poupança do resto do mundo. Conclusão, na nova ordem internacional, digamos assim, os EUA precisam gastar menos (poupar mais e começar a reduzir a dívida), enquanto os outros precisam gastar mais em seus próprios países e, inclusive, importar mais dos EUA.
Tão fácil falar quanto difícil fazer. Considerem a China: será necessário elevar o valor da moeda para aumentar o poder aquisitivo do país. Será preciso aumentar os salários internos e os benefícios concedidos aos trabalhadores para que eles não precisem poupar tanto e possam consumir mais. (Hoje, como não têm nem aposentadoria, nem saúde públicas, os chineses guardam dinheiro desesperadamente. Também as famílias precisam reservar recursos para pagar a faculdade dos filhos. É ... o comunismo deles é de trabalho pesado).
Não é fácil operar essa mudança. Elevaria os custos de produção, tornaria o país menos competitivo. Além disso, a China precisa de cada vez mais fábricas e obras para empregar os cerca de 500 milhões de habitantes, muito pobres, que ainda moram no campo e querem entrar no país moderno. Mesmo ganhando pouco ali, é melhor do que nas áreas rurais atrasadas.
De outro lado, não será simples dissolver a cultura do consumo nos EUA. Cultura e essência econômica.
Por isso, embora haja um certo acordo quando aos diagnósticos, o que se vê de prático é outra coisa: medidas para sair da crise vão no sentido dos desequilíbrios. O pacote do governo chinês prevê gastos pesados em obras de infra-estrutura e quase nada para programas sociais ou que melhorem a renda das pessoas.
Já nos EUA, programas incluem estímulo ao consumidor: meios para reabrir o crédito, por exemplo, e devolução e/ou redução de impostos para certos setores da população. E lembrem-se do que planeja a GM: vender nos EUA os carros produzidos na China.
Autoridades chinesas já disseram que, em tese, os americanos precisam poupar mais e eles, chineses, gastar mais. Mas, ressalvaram, os americanos não podem fazer isso num momento de queda tão forte da demanda mundial. Não há como substituir esses consumidores. E os chineses têm a poupança na alma.
Resumo da ópera: resolvida a crise financeira no sentido estrito de se fazer a limpeza no balanço dos bancos - o mundo vai voltar a funcionar desequilibrado. Encaminhar a solução para isso vai levar mais tempo e muito mais coordenação entre os países.
Publicado em O Estado de S.Paulo, 18 de maio de 2009
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