Ruth de Aquino, na edição desta semana da Revista Época
Não vi ninguém sair em defesa de Marta Suplicy, a não ser ela mesma e assessores. O ex-marido, que lhe deu o sobrenome, a criticou. As perguntas do PT – “Você conhece o (prefeito Gilberto) Kassab? Ele é casado? Tem filhos?” – queimaram o filme de uma sexóloga que sempre se disse liberal, liberada e discriminada. Amiga dos gays, mãe de roqueiro. Perguntaram ao prefeito, em sabatina num jornal, se ele era homossexual. Kassab respondeu: “Não, não sou”. Sinceramente, e daí?
Foi baixaria de Marta. Lula não deve ter aprovado, ele sabe o que é jogo sujo. Logo Marta, acusada grosseiramente de adúltera em 2001. Logo ela, que se indigna com razão quando alguém pergunta sobre sua vida familiar. Ninguém tem nada a ver com sua separação do senador Eduardo Suplicy logo após se eleger prefeita de São Paulo há sete anos. Nem com a paixão madura por seu conselheiro argentino de campanha, consumada em cerimônia high society. Uma opção de mulher, não de prefeita. O desespero com o favoritismo de Kassab transformou Marta na Sarah Palin brasileira: um pit bull de batom. Foi como se comportou ao indagar sobre a vida particular do adversário.
Uma polêmica nacional seguiu-se. No Rio de Janeiro, o sexo também entrou de gaiato na campanha por causa de fotos de Fernando Gabeira, de sunga e toalha-túnica na piscina do clube Flamengo. Um sungão casto se comparado à tanga de crochê lilás de 1979.
Diante de tamanha excitação, eu me pergunto até onde um gay assumido pode ir no Brasil. O prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, é homossexual declarado e foi eleito e reeleito. Não por ser gay, mas por suas qualidades como administrador. A questão gay é uma não-questão para os eleitores parisienses. Berlim também tem prefeito gay, Klaus Wowereit. O que nós, brasileiros, achamos disso?
O Brasil celebra as cores do arco-íris com paradas gigantescas. Só falta governadores beijarem transformistas na rua. A legislação é cada vez mais progressista. Lula defendeu no mês passado a união civil entre homossexuais: “Temos de parar com hipocrisia, porque a gente sabe que tem homem morando com homem, mulher morando com mulher, e muitas vezes vivem bem, de forma extraordinária”.
Vamos combinar que, no Brasil, a homossexualidade é vista com naturalidade em alguns redutos. Em outros, continua sendo tabu. Cantor pode ser gay ou bissexual, mas prefeito ou governador não. Ator de teatro pode ser gay, mas galã de telenovela não. Artista plástico pode assumir que é gay, mas economista do governo não. Designer ou decorador pode ir às festas enganchado ao namorado, mas diplomata não. Bancário sim, mas banqueiro não. Jogador de futebol, piloto ou ginasta, de jeito nenhum, esses precisam negar até o fim. Militares então... aí nem depende de patente. Acabam punidos se saírem do armário – o sargento Laci de Araújo é o exemplo mais recente.
O antropólogo Roberto DaMatta, de 72 anos, arguto observador das transformações na sociedade, recorda que, há menos de meio século, mulheres desquitadas não eram convidadas às casas de família. O divórcio era ilegal no Brasil. “Homossexuais eram uns ‘invertidos’. Policiais sentiam prazer nas batidas para prender gays”, diz. As convenções mudaram muito, felizmente. “Mas, de alguma forma, a homossexualidade ainda é considerada por conservadores uma traição. Daí a expressão ‘jogar no outro time’.” DaMatta diz que as perguntas impertinentes de Marta a Kassab “desmascaram o falso moralismo dos radicais”. “O que pega na Marta é uma espécie de desequilíbrio. Ela se acha politicamente correta, mas não aceita outra verdade.”
Foi atribuída ao gênio da física Albert Einstein (1879-1955) a frase “é mais fácil desintegrar um átomo que um preconceito”. Num momento em que os Estados Unidos podem eleger como presidente o primeiro mulato de sua história, derrubando um preconceito de raça que parecia intransponível, é válido perguntar até quando a opção sexual de um político poderá provocar constrangimento ou virar assunto de campanha. “A política é muito suja”, disse Marta Suplicy. É, companheira.
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